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Um francês que fez história na USP e seu fascínio pelo candomblé

Professor da USP por quase 30 anos, Roger Bastide contribuiu para a formação de uma geração de intelectuais brasileiros

Foto: jecosta / pixabay.com
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Muito além do candomblé, muito além da Bahia, o fascínio do francês Roger Bastide foi pelo Brasil. Pelo povo, pelos contrastes, pela mistura de civilizações e humanidades. Grande referência das ciências sociais, sobretudo da sociologia e da antropologia, também passeou pela crítica literária e pela psicologia social.

Das análises complexas de nossas coisas mais comuns, como um simples cafuné, até uma mudança fundamental na perspectiva dos estudos sobre populações e religiões negras, nos quase 30 anos como professor da Universidade de São Paulo, Bastide contribuiu de forma decisiva na formação de uma geração de intelectuais brasileiros.

Nasceu em 1898 e viveu no Brasil de 1938 até 1954. Chegou para substituir ninguém menos que Claude Lévi-Strauss, sempre lembrado por suas pesquisas de campo entre os índios brasileiros. Num momento em que a antropologia buscava superar o olhar sobre o “outro” como um estudo do exótico, Bastide e seu antecessor parecem introduzir um cuidado com a análise e um reconhecimento da complexidade e sofisticação das civilizações indígenas e negras. Ao lançar suas reflexões sobre o candomblé da Bahia, o sociólogo demarca uma ruptura com todos que consideravam pouco evoluídas as práticas afro-religiosas.

Roger Bastide (segundo da esquerda para a direita) em imagem do livro “Diálogo entre Filhos de Xangô” (Reprodução / Jornal da USP / USP Imagens)

Roger Bastide talvez seja um dos primeiros a indicar a preservação de uma filosofia e de uma epistemologia nos terreiros de candomblé, revelando o “ethos” dessas tradições. Suas pesquisas antropológicas inserem um novo “fazer”, uma vez que o rigor do método nem sempre respeitava o interlocutor e, em vez de estabelecer uma relação de interação e empatia, acabava reproduzindo a pretensa superioridade europeia ao investigar culturas “primitivas”.

Ao reconhecer que a relação com o sagrado é uma necessidade humana, Bastide segue uma trajetória muito particular que não encontra escopo apenas no universo religioso. Arte e literatura, psicologia social e psicanálise, seus olhares sobre São Paulo e sobre a Bahia, suas vivências da infância e sua iniciação no candomblé. Em sua obra, tudo converge e dialoga.

Do “pensamento selvagem” de Lévi-Strauss ao “sagrado selvagem” de Bastide, seguem os “franceses” na tentativa de desvendar a condição humana. A despeito de todas as diferenças, o que há de universal em nossa espécie? Ambos incursionaram na análise dos mitos, visitaram sonhos e saberes ancestrais, testemunharam transes, possessões, manifestações de espíritos e orixás, nos pajés e mães de santo. Alcançaram uma dimensão da religiosidade que se liberta do peso das instituições. Chegaram à plenitude do sagrado: puro, selvagem, primitivo. Revelaram o caminho para se entender a essência da humanidade.

Na França e no Brasil, Roger Bastide ainda é uma das maiores referências da sociologia. Mesmo as críticas mais justas sempre chegam cheias de ressalvas. Suas contribuições foram incomensuravelmente maiores, o que tem renovado o interesse por sua obra aqui e lá e comprovado que segue atual e instigante. Como professor da USP, formou uma geração de grandes intelectuais tanto nas ciências sociais, como Florestan Fernandes e Maria Isaura Pereira de Queiroz, quanto na crítica literária, como Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza.

O fascínio pelo candomblé teve seu auge em 1951, quando Bastide foi iniciado como filho de Xangô. Cabe ressaltar sua origem protestante e lembrar que estamos falando de um francês, logo, como fazia questão de frisar Pierre Verger, há um cartesianismo inerente. Entretanto, ao se deixar “enfeitiçar” pelas tradições africanas preservadas no Brasil e assumir as insígnias da realeza do rito nagô e as prerrogativas de seu posto, Bastide avança na qualidade e na profundidade de suas pesquisas científicas. Ele entendeu.

Em Estudos Afro-brasileiros, o próprio Roger Bastide admite isso e escreve: “A pesquisa científica exigia de mim a passagem preliminar pelo ritual de iniciação. Até a minha morte serei reconhecido a todas as Mães de Santo que me trataram como um filho branco e compreenderam, com seu dom superior de intuição, minha ânsia por novos alimentos culturais e pressentiram que meu pensamento cartesiano não suportaria as novas substâncias como verdadeiros alimentos.”

Quando se fala de uma epistemologia de resistência, mantida em territórios negros e visivelmente expressada nos terreiros, é preciso fazer referência e reverência a Bastide, que usou seu status de branco europeu para lançar à categoria de civilização tudo que se preservou e se recriou no candomblé. Esses “pedaços” de África constituíam, na sua visão, espaços de poder, que detinham, inclusive, certa autonomia em relação à sociedade mais ampla.

Em 1958, Roger Bastide lança seu clássico O Candomblé da Bahia, que mostra, entre tantas questões fundamentais, uma filosofia do universo e uma concepção sofisticada do homem e do cosmo como premissas da organização e manutenção dos terreiros. Talvez o livro que melhor expresse o pensamento do sociólogo francês. Sem esconder seu encantamento, escreveu uma obra indispensável e realizou um estudo profundo. Mais que uma análise, quase um transe induzido pelos cânticos, toques e danças. Nos ritos e ritmos a descoberta de um mundo fascinante, as revelações da grande civilização perdida.

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