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Tempos anormais

Não se pode avaliar o início do mandato de Lula sem a noção de que vivemos em um país fraturado

Foto: Marcelo Camargo/ABR
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Algo precisa ser considerado em qualquer avaliação dos cem primeiros dias do terceiro governo Lula: seguimos sem viver tempos normais. Embora, com o fim da Presidência de Jair Bolsonaro, um governo normal tenha se instalado em Brasília, o contexto em que tal governo opera ainda é marcado pelo descarrilamento da democracia brasileira, iniciado em 2013. As malfadadas jornadas de junho, em que o MPL pariu o MBL, originaram também a crise de legitimidade de nosso sistema político, culminando no desgoverno fascistoide capitaneado por um boçal e no qual militares partidarizados e lumpempolíticos se locupletaram.

A boçalidade entronada destroçou o País, desorganizando a administração pública, desestruturando políticas longamente construídas, tornando-nos párias internacionais, devastando o meio ambiente, produzindo um genocídio indígena, deixando morrer centenas de milhares na pandemia e aprofundando o fanatismo na sociedade. Se, em 2013, a direita saiu do armário e a extrema-direita emergiu do esgoto, entre 2019 e 2022 ambas se uniram – sob a liderança dos extremistas – para pilhar e destruir o País. Quiçá o fracasso da intentona de 8 de janeiro de 2023 marque o fim desse ciclo nefasto de uma década e o início da reconstrução e da volta do Brasil aos trilhos. Quiçá.

Seja como for, qualquer governo que sucedesse ao descalabro bolsonaresco precisaria ser de reconstrução nacional. Coube a Lula III essa tarefa. É com base nela que este início de gestão deve ser entendido. A reconstrução começou, mas de que forma? Primeiramente, é preciso lembrar o óbvio. Por se tratar de um governo de reconstrução, é inescapável ter de reorganizar as coisas antes de produzir entregas. Isso fica claro na retomada de programas anteriores, descontinuados pelo bolsonarismo: Minha Casa Minha Vida, Mais Médicos e Bolsa Família. Embora tais políticas sejam marcas de governos petistas, a retomada não se resume a elas. Toda uma construção institucional e de políticas iniciada desde o fim da ditadura – ou mesmo antes dela – precisou ser retomada. O desmonte produzido em áreas como educação, cultura, ciência e tecnologia, meio ambiente e direitos humanos pôs a perder avanços que precedem as gestões petistas. Portanto, não se trata de Lula retomando Lula, mas de um governo que precisa corrigir a solução de continuidade que o precedeu para levar o ­País de volta à normalidade, assegurando o prosseguimento do processo cumulativo e incremental que caracteriza programas governamentais, fazendo com que eles, ao longo do tempo, sejam mais políticas de Estado do que de governo.

Esse é um dos fatores a ser considerados quando se observam os resultados de recentes pesquisas, do Ipec e do ­Datafolha, sobre a popularidade do presidente e de sua administração. Ambos os levantamentos trouxeram uma informação que recebeu bastante destaque na mídia: Lula tinha a pior avaliação de seus três mandatos ao completar três meses no cargo, assim como um resultado pior do que seus antecessores – à exceção de Bolsonaro. O Ipec apontou Lula com 41% de ótimo/bom e 24% de ruim/péssimo; o ­Datafolha apontou, respectivamente, 38% e 29%. Para fins de comparação, em seus primeiros mandatos, FHC, Lula e Dilma Rousseff obtiveram no Datafolha, respectivamente, 39%, 43% e 47% de ótimo/bom e apenas 5%, 7% e 12% de ruim/péssimo.

Qualquer governo que sucedesse ao descalabro bolsonaresco precisaria ser de reconstrução nacional

Ocorre que aqueles não eram tempos marcados pela radicalização da polarização, iniciada em junho de 2013. Tanto é assim que os números de ruim/péssimo foram, para Dilma II, de 60% (pressagiando o impeachment) e, para Bolsonaro, de 30%, quebrando o padrão anterior. Hoje, os 24% a 30% que julgam negativamente o governo Lula equivalem ao piso de avaliações positivas mantidas durante todo o quadriênio bolsonarista, mesmo em seus momentos mais funestos. Por mais atrocidades que cometesse, o capitão reformado manteve sempre a aprovação desse contingente, que oscilou entre um terço e um quarto dos eleitores.

Pois a polarização remanesce e dificilmente será revertida – ao menos significativamente – durante os próximos quatro anos, a despeito das entregas que o atual governo possa vir a fazer. O ciclo de uma década, iniciado em junho de 2013 e (talvez) fechado em janeiro de 2023, legou-nos uma sociedade fraturada, em que uma parcela não desprezível da população foi radicalizada à direita. A radicalização faz com que, para tal segmento, percepções positivas ou negativas acerca de governos e governantes sejam postuladas a priori, definidas antes por identidades, crenças e afetos arraigados do que por avaliações objetivas e racionais da performance dos mandatários de turno.

Se uma dificuldade provém da sociedade, outra está no próprio sistema político. Desde o fim da ditadura, os sucessivos governos funcionaram na lógica do presidencialismo de coalizão: presidente institucionalmente forte, Congresso Nacional fragmentado, impondo a necessidade não só da construção de coalizões multipartidárias, como da atuação diligente do presidente da República na gestão de sua base de sustentação legislativa. Foi o que fizeram sucessivos governantes: José ­Sarney, Itamar Franco, ­Fernando ­Henrique e ­Lula. Fernando Collor e Dilma fracassaram: um por prepotência, outra por inapetência para as transações parlamentares. Michel Temer, que entendia do assunto (e, não à toa, presidiu por três vezes a Câmara), precisou ocupar-se mais do salvamento de sua pele do que da implementação de uma agenda legislativa – que, não obstante, avançou durante seu início de mandato, antes do “Joesley Day”.

Bolsonaro, simplesmente, abdicou da tarefa de gerir sua coalizão, deixando a cargo dos presidentes das duas casas e das lideranças partidárias no Congresso o papel de fazer andar a pauta legislativa. Por isso, durante seu mandato, se tornaram impositivas as emendas orçamentárias de bancadas estaduais, tirando do Executivo um poder institucional importante, que lhe permitia barganhar com o Legislativo. Antes dele, Dilma já se havia impingido as emendas individuais impositivas. E foi também com Bolsonaro que se erigiu o mostrengo do “orçamento secreto”, a consumação desse processo de enfraquecimento presidencial perante o Congresso. Eis mais uma herança maldita do quadriênio bolsonarista: é com esse Congresso, institucionalmente empoderado, politicamente irresponsável e adernado à direita, que Lula precisa lidar. Não à toa, sua agenda legislativa só agora começa a sair da gaveta e nada temos para falar dela nestes primeiros cem dias de mandato. •


*Cientista político e professor da FGV-SP.

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tempos anormais’

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