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Soldados e pichis

Ódio de militares contra civis norteia as Memórias do Calabouço dos companheiros de prisão de José Mujica

José “Pepe” Mujica e Mauricio Rosencof (com o também tupamaro Adolfo Wassen Jr. entre eles) no dia da libertação, em 1985. (FOTO: Agencia Camaratres/AFP)
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“Tem outra frase que é usada permanentemente não só pelos soldados, mas também pelos oficiais, que diz que o militar que pensa faz merda. Não tem que pensar”, constata o político, jornalista, escritor e guerri­lheiro uruguaio Eleuterio Fernández Huidobro­ no livro Memórias do Calabouço,­ em que ele e o dramaturgo, romancista, poeta e jornalista conterrâneo Mauricio­ Rosencof­ refazem o percurso cumprido ao lado do hoje ex-presidente do Uruguai José ­“Pepe” Mujica durante os quase 12 anos em que estiveram reféns do Estado ditatorial instalado no país em 1973.

Lançado pela primeira vez em 1987, pouco tempo depois da anistia aos três militantes do Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros (MLN-T), o livro ganha somente agora uma edição brasileira, após o sucesso do filme Uma Noite de 12 Anos, do uruguaio Alvaro Brechner, inspirado no relato, e após a nova experiência de cárcere vivida pelo ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, por 580 dias entre 2018 e 2019. As impressões de Rosencof e Huidobro sobre a natureza militar com que conviveram de 1973 a 1985 ganham um relevo a mais num Brasil hoje dominado pelo militarismo bolsonarista. “Outra coisa que é absolutamente irracional, mas forma uma mentalidade especial, é a ‘lei’ de que ‘o superior tem sempre razão’. O superior nunca erra, ainda que ele ordene uma grande presepada, o que, como se sabe, é bastante comum”, avalia Rosencof. Que o diga o “capitão” Bolsonaro, no que diz respeito, por exemplo, aos comandos disparados contra a (ou a favor da) Covid-19.

Os detentos comiam carrapichos, papel higiênico e insetos para matar a fome

Os autores descrevem o espanto ao serem tratados pelos militares como ­pichis – sinônimo, nas palavras deles, para “pobre, imundo, morto de fome”, “pária, marginal, mendigo”. Pensavam, em princípio, que fosse uma designação direta aos guerrilheiros tupamaros presos, mas logo compreenderam que pichi se referia a qualquer civil, qualquer cidadão que não fosse militar. Segundo afirmam Rosencof­ e Huidobro em formato de diálogo, o mundo mental militar divide tudo e todos em “nós” e “eles”, sejam “eles” supostos criminosos sob custódia, ministros de Estado ou o presidente da República (os dois primeiros ditadores uruguaios pós-golpe eram civis) – todos pichis. Algo análogo acontece com o termo “comunista”, usado para se referir a comandantes pouco queridos ou para o motorista de um carro de luxo que quase atropelou um soldado de bicicleta. “A falta de criatividade, a falta de iniciativa e de flexibilidade que os soldados e oficiais têm é predeterminada. Tomar iniciativa é uma aventura de civil, de pichi”, interpreta Rosencof.
O ambiente descrito pelos ex-prisioneiros é bem mais tenebroso do que fazem supor hábitos folclóricos dos carcereiros dos militantes antifascistas. “Durante o ano de 1972, o MLN sofre uma severa derrota. O Exército, última carta da oligarquia, avançou sobre as demais posições populares”, escrevem na introdução. No poder, os militares encarceraram e torturaram em massa. Feitos prisioneiros, os tupamaros foram divididos em grupos de três e distribuídos por vários quartéis pelo interior uruguaio. Embora juntos, Mujica, Rosencof e Huidobro passaram mais de uma década sem contato físico, cada um numa solitária minúscula. “Ficamos anos sem nos ver, não só entre nós, mas a nossa própria cara em um espelho”, diz Rosencof. O silêncio absoluto lhes foi imposto – não podiam falar nem com objetos, segundo ele, que teve pai e irmãos mortos em Auschwitz. Mais de uma vez tiveram demarcadas faixas de tinta branca que não podiam ultrapassar, dentro do calabouço. “Já que não podemos matá-los, vamos deixá-los loucos”, teria dito um coronel responsável pelos três reféns.

Em visita aos presos em 1974, o general responsável (e futuro ditador, entre 1981 e 1984), Gregorio Álvarez, concedeu-lhes um benefício: uma cadeira para cada cela minúscula. Em 2009, Álvarez seria condenado pela Justiça uruguaia a 25 anos de prisão, por 37 “homicídios especialmente agravados” de militantes tupamaros entre 1973 e 1978. Morreu na prisão, em 2016, aos 91 anos.

Além das torturas físicas, os militares submeteram os civis a toda sorte de crueldade e humilhação. Jogavam terra e bitucas de cigarro na comida, atiravam água com creolina quando o cheiro ficava insuportável (não havia privadas nas celas, nem regularidade para o uso das mesmas fora delas), proibiam banhos no verão e obrigavam banhos gelados no inverno. “Os homens de bem não falam de direitos humanos”, dizia uma frase inscrita numa parede, que Rosencof atribui ao ditador civil Aparicio­ Méndez (1976-1981). Num dos quartéis para os quais foram rotineiramente transferidos, em 1976, o regime de fome foi radical, levando-os a comer carrapichos, papel higiênico, sabão, desodorante e insetos. Mujica (que não participou do livro, mas revisou seu conteúdo) conseguiu um penico cor-de-rosa, do qual se tornou inseparável.

A violência e o terror entre militares também aconteciam, como quando um soldado mais solidário foi punido e se tornou repentinamente cruel. “Era um dos piores. Não nos perdoou nunca por ter sido bom”, descreve Huidobro, que morreu em 2016, aos 74 anos.
Com o tempo, os reféns desenvolveram um modo de comunicação por meio de batidas na parede das celas contíguas, mesmo com as mãos sempre amarradas. Autor de As Veias Abertas da América Latina (1971), o uruguaio Eduardo Galeano reflete sobre aquele estratagema: “O encontro entre Mauricio e ‘Nhato’ (Huidobro) através da parede não reforça apenas a força da dignidade e o poder de astúcia de nossos presos políticos: esse diálogo alucinante é, além de tudo, o mais certeiro símbolo do fracasso de um sistema que quis transformar todo o Uruguai em um país­ de surdos-mudos”. Essa condição os brasileiros também conhecem.

Publicado na edição n° 1158 de CartaCapital, em 20 de maio de 2021.

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