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Saindo da UTI

Além do esforço para reconstruir as políticas públicas, Lula acerta ao investir no fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde, avalia o ex-ministro José Gomes Temporão

Foram os laboratórios públicos que salvaram o Brasil no período mais agudo da pandemia de Covid-19 – Imagem: Instituto Butantan/GOVSP
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Ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz, José Gomes Temporão avalia que 2023 foi um ano de reconstrução, com a retomada de políticas públicas interrompidas ou desarticuladas pela equipe de Jair Bolsonaro e a recuperação do papel de liderança do Ministério da Saúde. Para o especialista, o governo Lula também acerta ao investir no fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde, a trazer benefícios não apenas para o SUS, mas também para a economia. “Estamos falando de um setor responsável por 10% do PIB, por 12 milhões de postos de trabalho diretos e indiretos, que está na fronteira do conhecimento humano, contribuindo para o desenvolvimento de novas tecnologias, da microeletrônica à inteligência artificial”, observou, em entrevista ao editor-executivo Rodrigo Martins. O maior erro, acrescenta Temporão, foi buscar um “jeitinho” para não cumprir o piso constitucional de gastos na saúde: “Foi uma decisão lamentável”.

CartaCapital: Que balanço o senhor faz deste primeiro ano do governo Lula na área da saúde?
José Gomes Temporão: Foi um ano de reconstrução. Nos governos anteriores, houve uma grave degradação da capacidade de gestão, de coordenação e de liderança do Ministério da Saúde, sobretudo na pandemia. Participei do grupo de trabalho da Saúde no gabinete de transição, ao lado dos ex-ministros Arthur Chioro e Alexandre Padilha e da então presidente da Fiocruz, Nísia Trindade. A equipe apresentou um plano emergencial de ação para os primeiros cem dias e propôs uma nova estrutura organizacional, sugestões acatadas pela ministra ­Nísia. Destacaria, neste contexto, a criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital, do Departamento de Saúde Mental e da Coordenação-Geral da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. A pasta retomou seu papel de liderança, constituiu um corpo técnico experiente e capacitado e reconstruiu políticas públicas. Ainda na fase de transição, foi indispensável aquele crédito extraordinário de 20 bilhões de reais para recompor o orçamento de 2023. Além desse processo de reconstrução, eu ressaltaria o fortalecimento do Complexo Econômico Industrial da Saúde. Sob a liderança de Carlos Gadelha, estamos avançando bastante no processo iniciado em 2008, quando eu era ministro.

Não cumprir o piso de gastos em saúde neste ano foi o maior erro do governo, diz Temporão – Imagem: ISAGS

CC: Lula anunciou um programa de investimento de 42 bilhões de reais até 2026 para fortalecer o Complexo Industrial da Saúde. Por que é tão estratégico, para o Brasil, desenvolver esse setor?
JGT: É estratégico por vários motivos. Um deles ficou bastante evidente durante a pandemia: o elevado grau de vulnerabilidade tecnológica do SUS. Na crise sanitária, os Estados nacionais se voltaram para a proteção de suas populações. Cada país tentou se virar como podia. Tivemos dificuldade para importar equipamentos, insumos e matérias-primas para a fabricação de medicamentos e vacinas. Respiradores que seriam enviados para o Brasil chegaram a ser “sequestrados” por outros países durante o transporte. Além disso, a área da saúde também tem uma dimensão econômica, gera riqueza e empregos de qualidade. Estamos falando de um setor responsável por 10% do PIB, por 12 milhões de postos de trabalho diretos e indiretos, que está na fronteira do conhecimento humano, contribuindo para o desenvolvimento de novas tecnologias, da microeletrônica à inteligência artificial. Por essas características singulares da saúde, um país da dimensão do Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, com um sistema universal de saúde que detém um poder de compra importante, com universidades e institutos de pesquisa muito relevantes, não poderia abrir mão de desenvolver esse complexo.

CC: Quais são os setores mais vulneráveis desse complexo?
JGT: Hoje temos uma dependência bem menor na área de vacinas. Ao longo de quatro décadas, valendo-se de uma estratégia de compras públicas com transferência de tecnologia, o Brasil conseguiu estruturar uma indústria de imunizantes importante. Foi o que nos salvou na pandemia. Não podemos esquecer: foi a vacina do Butantan que esteve disponível, nos primeiros meses de 2021, para que a gente pudesse começar a vacinar os grupos de risco. Logo em seguida, a Fiocruz começou a produzir a sua, desenvolvida em parceria com a AstraZeneca e o laboratório de Oxford. Eu diria que uma das ­áreas mais críticas é a farmoquímica. O Brasil importa, hoje, 95% dos princípios ativos usados na fabricação de medicamentos, sobretudo da Índia e da China. Nossa vulnerabilidade nesse setor é gigantesca.

“O País pode usar o imenso poder de compra do SUS para obter acordos de transferência de tecnologia”

CC: Faz sentido investir na produção nacional de hemoderivados?
JGT: Sim, totalmente. Hoje, nós exportamos o plasma dos hemocentros e, depois, precisamos comprar os medicamentos produzidos no exterior a partir do fracionamento desse plasma, como as albuminas e imunoglobulinas, que são de altíssima utilidade no tratamento de diversas doenças. Com a Hemobrás, que deve iniciar a produção no próximo ano, teremos capacidade de gerar até fatores recombinantes para tratar hemofílicos. É essencial que o Brasil domine essa tecnologia e amplie a captação de sangue, por meio de campanhas de doação, para adquirir autossuficiência nesse setor.

CC: Como o Brasil pode usar o poder de compra do SUS para desenvolver o Complexo Industrial da Saúde?
JGT: Não tem mistério, países do mundo inteiro fazem isso. Nos EUA, existe o Buy American Act. Órgãos públicos são obrigados a comprar produtos e materiais de procedência nacional. Alguns meses atrás, Emmanuel Macron anunciou a retomada da produção de um conjunto de medicamentos que a França havia deixado de produzir internamente. O presidente francês entende que isso ameaçava a segurança nacional. No Brasil, o SUS atende 150 milhões de pacientes em todas as suas necessidades de saúde. O Poder Público representa metade do mercado de reagentes para testes diagnósticos, 40% do mercado farmacêutico, 95% do mercado de imunizantes. O País pode usar o imenso poder de compra do SUS para obter acordos de transferência de tecnologia. O exemplo mais interessante é o da vacina da Fiocruz. Houve uma inovação no modelo de compra pública, por meio de uma encomenda tecnológica. Nesse arranjo, a Fiocruz e o governo brasileiro assumiram o risco de financiar uma vacina de vetor viral ainda em desenvolvimento, que não sabíamos se iria funcionar. A fase três da pesquisa foi realizada em parceria conosco, inclusive com pacientes brasileiros. Havia uma cláusula no acordo que obrigava a AstraZeneca, em caso de sucesso, a transferir completamente a tecnologia, bem como a plataforma de produção das vacinas para a ­Fiocruz, o que foi concluído no fim de 2021.

O câncer deve tornar-se a principal causa de mortes no Brasil. O Mais Médicos ampliou o acesso à saúde – Imagem: Luís Oliveira/MS e HCN/SS/GOVGO

CC: Por que demoramos tanto tempo para usar essa vantagem?
JGT: Concepções políticas e ideológicas antagônicas ao que deva ser o desenvolvimento econômico brasileiro. Desde os anos 1950, vemos duas correntes em confronto. De um lado, os economistas ortodoxos, que veem o Brasil como um grande produtor de alimentos e ponto. De outro, há os que acreditam no potencial industrial do País. Essas diferentes visões levaram a rupturas, avanços e recuos. Nos anos 1980, o Brasil produzia 50% dos princípios ativos usados na fabricação de medicamentos. Com a desastrada abertura econômica de Collor, nossas farmoquímicas quebraram, não podiam competir em preço com a avalanche de produtos oferecidos pela Índia e pela China. Hoje, produzimos apenas 5% das nossas necessidades.

CC: O governo Lula retomou alguns programas que foram interrompidos ou desarticulados nos anos Bolsonaro, a exemplo do Mais Médicos e do Farmácia Popular. Qual é a importância deles para a promoção da saúde?
JGT: São programas essenciais. Criado no governo de Dilma Rousseff, o Mais Médicos cumpre o papel de assegurar a presença de profissionais da saúde nos municípios mais afastados ou de menor IDH. Isso tem um impacto enorme para garantir o acesso da população mais vulnerável aos serviços de saúde, além de atrair jovens médicos para o serviço público e para a atenção básica. Já o Farmácia Popular, concebido nas primeiras gestões de Lula, teve duas versões: uma com unidades próprias e outra baseada na oferta de medicamentos gratuitos ou altamente subsidiados na rede varejista privada. Ambas conseguiram ampliar muito o acesso ao tratamento de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e asma, e contribuíram para reforçar o planejamento familiar, com a popularização das pílulas anticoncepcionais. O programa também fortaleceu a indústria de medicamentos genéricos, que cresceu de maneira sustentada nas últimas décadas, mas ganhou impulso com o Farmácia Popular. Hoje, 30% do mercado farmacêutico é formado pelos genéricos, que têm um custo muito mais acessível para os brasileiros.

“O Brasil faz a sua transição demográfica na metade do tempo que a França levou”

CC: O novo Censo revelou um processo de envelhecimento da população brasileira muito acentuado. Como isso se reflete da saúde pública?
JGT: O Brasil faz a sua transição demográfica na metade do tempo que a França levou. É impressionante a rapidez do processo de envelhecimento, os próprios técnicos do IBGE ficaram preocupados com os números. Isso tem repercussão na saúde pública objetiva: com mais idosos, haverá mais doenças crônicas, mais câncer e mais pressão sobre o SUS. Não por acaso, recomendamos, no período de transição do governo, a criação de uma coordenadoria específica na área de oncologia. Hoje, o câncer é a segunda maior causa de mortes no Brasil, atrás apenas das doenças cardiovasculares e cerebrovasculares, mas rapidamente se tornará a primeira. Em cerca de 600 municípios brasileiros, o câncer já é a principal causa de morte.

CC: Apesar da maior pressão sobre o SUS, Lula sancionou um projeto que permitiu o não cumprimento do piso de gastos em saúde neste ano, para não comprometer o resultado fiscal. Não é uma sinalização preocupante?
JGT: É o famoso jeitinho brasileiro. Se a legislação fosse cumprida, o Ministério da Saúde teria 20 bilhões a mais em 2023. Tudo bem, estão negociando um acordo para que isso seja compensado em 2024, mas a manifestação das entidades ligadas à saúde pública foi muito clara: cumpra-se a Constituição. Foi uma decisão lamentável. O próprio governo concorda que o SUS está subfinanciado, que o gasto público precisa ser ampliado. É um contrassenso negar o aumento real do orçamento já neste ano. •

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

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