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De olho na eleição de 2022, Cláudio Castro quer repaginar as UPPs

O governador diz que a proposta será “diferente das UPPs” de Cabral. Comunidades mantém o ceticismo e a desconfiança

Efeito cloroquina. Jacarezinho também tinha uma UPP. Sucateada, a base foi removida em 2019. (FOTO: Mauro Pimentel/AFP)
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A operação policial no Jacarezinho, que resultou na morte de um policial civil e 27 “suspeitos”, não foi apenas a mais sangrenta da história do Rio de Janeiro, também foi uma oportunidade de conhecer a forma como o governador Cláudio Castro, do PSC, pretende conduzir a política de segurança pública. Com o mandato cassado por um processo de impeachment, o antecessor Wilson Witzel­ não dis­farçava a repulsa aos direitos humanos, e chegou a orientar a tropa a “mirar na cabecinha” de homens armados e atirar. Depois de elogiar a violenta incursão no Jacarezinho, dizendo que a polícia agiu de maneira “fiel” ao tentar cumprir os mandados de prisão, Castro deu pistas sobre um novo projeto para as comunidades cariocas.

Ainda incipiente e sem grandes detalhes, o projeto de Castro vem sendo comentado a conta-gotas desde 2020, quando o então governador em exercício afirmou em algumas ocasiões que o plano contaria com preparação minuciosa e deveria entrar em vigor no primeiro semestre de 2021. À época, garantiu que a recuperação de áreas comandadas pelo tráfico ou por milícias seria fundada em um tripé: aumento no efetivo policial e fortalecimento do programa conhecido como Segurança Presente, investimentos em inteligência para investigações, além da ocupação de setores dominados por esses grupos armados.

Ao comentar o projeto na quinta-feira 13, Castro foi, porém, enfático ao dizer que ele será “diferente das UPPs”, as Unidades de Polícia Pacificadora criadas por Sérgio Cabral em 2008. O governador ressaltou que o novo plano terá foco nas políticas sociais de saúde, educação e moradia, além de se distanciar da experiência aplicada em 38 comunidades do Rio e da Baixada Fluminense. Ao jornal Extra, o porta-voz da Polícia Militar, Ivan Blaz, acrescentou que o projeto, sem data de lançamento, é uma “reformulação das UPPs” para deixá-las “mais efetivas”.

A ideia de “ocupar favelas” é vista com ceticismo pelo presidente da Associação de Moradores do Morro Santa Marta, José Mário Hilário. Há 30 anos no posto, ele estava presente quando a primeira UPP foi inaugurada na comunidade em Botafogo, na Zona Sul do Rio. De dimensões viáveis e boa localização, o Santa Marta foi escolhido para ser uma espécie de ocupação-modelo, em que a unidade de segurança viria acompanhada de serviços sociais. A chamada UPP Social, programa que cuidaria da área, também deu atenção especial à comunidade.

Depois de elogiar a chacina em Jacarezinho, o governador renova a aposta na política de ocupação

“Os primeiros seis anos foram de completa tranquilidade e teve criança que cresceu sem ouvir um único tiro”, lembra Hilário. Por pressão constante dos moradores, estruturas sociais e serviços públicos também foram chegando, o que se materializou na construção de uma Clínica da Família, uma unidade da Fundação de Apoio à Escola Técnica e outra da Indústria do Conhecimento, iniciativa educacional da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro. Hilário diz ser possível identificar melhora, mas todo esse legado começou a ruir a partir de 2014.

“O governo foi progressivamente perdendo a força e diminuindo os investimentos que fazia na UPP”, afirma ele. Com a volta dos tiroteios, a polícia de proximidade, pacífica e presente na vida dos moradores, anunciada como objetivo da política de ocupação, deixou de existir. “Se a unidade continua ainda hoje, é com os padrões da polícia antiga, acostumada com confrontos e letalidade.”

Para Hilário, o exemplo da comunidade Santa Marta, que mesmo sendo escolhida como “modelo” não foi adiante, deve servir de alerta. Não por acaso, o líder comunitário mostra-se incrédulo com a ideia do governador de “repaginar” as UPPs: “Acha mesmo que ele vai fazer isso?”

A incongruência é ressaltada por especialistas em segurança pública que veem no desmonte das UPPs um símbolo do fracasso das políticas de ocupação. Havia quase 40 bases no auge do programa. Em 2018, o estado sob intervenção federal decidiu pelo fechamento ou realocação de metade delas – algumas foram incorporadas a batalhões da Polícia Militar. Ao contrário do Santa Marta, a instalação dessas unidades teve resultados mais traumáticos em comunidades maiores, como o Complexo do Alemão e a Rocinha. Nesta última, o desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza resultou na condenação de policiais da UPP local, acusados de torturar, assassinar e ocultar o cadáver do morador em 2013.

“Acha mesmo que ele vai fazer isso?”, indaga um cético líder comunitário, ao falar da promessa na área social

No Jacarezinho, o progressivo abandono do projeto veio acompanhado de reorganização territorial, afirma Sílvia Ramos, cientista social e coordenadora da Rede de Observatórios do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. A intervenção federal retirou policiais de dentro das UPPs, que ficavam no coração das comunidades, e realocou os agentes para as bordas, lembra ela. De acordo com a professora, havia resistência ao projeto dentro da própria Polícia Militar, cujo histórico de violência não condizia com as práticas de polícia pacificadora: “Criou-se uma divisão entre os policiais de batalhão e os das UPPs, e era comum os primeiros dizerem que estavam ali para combater o crime, não para serem ‘porteiros de bandidos’, desejando bom dia e boa tarde a todos os que passavam”.

A proposta de Castro será equivocada se mantiver a ideia de “ocupação”, e não der completo protagonismo às demandas populares, impondo políticas de cima para baixo, emenda Ramos. Para evitar a repetição de erros do passado, é preciso ouvir o que os moradores têm a dizer, mas o ceticismo é grande. O governador tem dado maior autonomia às polícias e parece não se incomodar com o aumento dos índices de letalidade. Por isso Ramos tem dúvida sobre Castro conseguir chegar aos objetivos sociais do plano sem confrontos. “O que ele precisava fazer urgentemente agora, depois do Jacarezinho, era suspender as operações policiais e interromper essa estratégia sem sentido de entrar nas favelas e deixar corpos pelo chão.”

A proposta de Castro também tem feições eleitoreiras, lembra José Cláudio Souza Alves, sociólogo e professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Tentando se firmar em questões delicadas desde a iminência do afastamento definitivo de Witzel, o novo governador prepara o plano de ocupação das comunidades em resposta a um eleitorado que pode elegê-lo em 2022. A desconfiança é que seja justamente pelo viés conservador que elegeu Witzel. Ou seja, Cláudio Castro pode desejar essa “ocupação” para alargar a influência política em algumas regiões.

Trunfo. Com a medida, Castro visa obter o apoio do eleitorado que elegeu Witzel (FOTO: Rafael Campos/GOVRJ)

“Uma política de ocupação e segurança certamente está fadada ao fracasso, porque a única ‘segurança’ que as autoridades do Rio de Janeiro conhecem é a da letalidade”, afirma Alves. Segundo o professor, o grande erro é considerar o morador das comunidades um sujeito passivo, que sempre tem acesso às políticas públicas de forma autoritária. “Se você quer alterar isso, é preciso constituir esses moradores não só como interlocutores, mas também como atores da própria mudança dentro das comunidades, tendo a oportunidade de construir nova realidade. O fracasso das UPPs está ligado, ainda, ao anacronismo de um estado que não entendeu essa ideia e de uma polícia que nunca foi acostumada a ela”, afirma.

Com o apoio de Jair Bolsonaro, que se reuniu com Castro no início do mês, a pauta da segurança pública deve ganhar um protagonismo cada vez maior no Palácio Laranjeiras. Para não repetir os erros de Witzel, o novo governador busca o apoio da base mais conservadora na Assembleia Legislativa do Rio e, certamente, voltará ao tema em breve.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1158 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE MAIO DE 2021.

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