CartaCapital
Rio 40 graus
Debelar a crise de segurança exige o combate à aliança entre as bandas podres da polícia e da política


O País assistiu atônito a mais um capítulo da crise de segurança pública no Rio de Janeiro. Desta vez, um grupo miliciano, em resposta à morte de um dos seus asseclas, perpetrou o terror na Zona Oeste da cidade, incendiando 35 ônibus. Há algo novo no episódio ou trata-se apenas de mais um capítulo de um enredo conhecido? Há solução para o Rio de Janeiro?
Ainda que as narcomilícias, no centro da crise atual, constituam um fenômeno relativamente novo, já que apenas de alguns anos para cá milicianos e traficantes de drogas estão juntos e misturados, a aliança da banda podre da polícia com a banda podre da política é uma novela antiga, que se adapta aos tempos e é a fonte dos principais problemas de segurança pública no estado. Desde fins dos anos 1960 tivemos como exemplo os chamados esquadrões da morte, grupos de extermínio, polícia mineira e, mais recentemente, a partir dos anos 2000, as milícias. Nem os atos terroristas são novidade, como nos lembra a Chacina da Baixada, quando policiais militares cometeram aleatoriamente 29 assassinatos nas ruas de Nova Iguaçu e Queimados, em 2005.
A milícia é baseada em um modelo de negócio sustentado por um tripé: 1. Domínio territorial armado. 2. Uso da violência para exploração econômica do território. 3. Monopólio político local. Explora-se desde transporte público irregular, gatonet, grilagem de terras, construção irregular de imóveis, até qualquer atividade legal exercida por empresários locais, obrigados a pagar taxas mensais para os criminosos. Os eleitores são coagidos a votar apenas nos nomes indicados pelos milicianos. Campanhas eleitorais de outros candidatos são proibidas no território. A relação entre a milícia, a banda podre da polícia e a banda podre da política garante a sustentabilidade do negócio.
Não há, portanto, como pensar seriamente em segurança pública efetiva no estado do Rio de Janeiro sem enfrentar essa coalizão espúria e sem levar a cabo uma reforma radical das polícias, com o expurgo dos maus policiais. Devido ao nível de degradação das instituições fluminenses, não é, porém, crível pensar que alguma solução duradoura possa ser oferecida pelos poderes públicos locais.
Dado o nível de degradação, os poderes públicos locais são incapazes de, sozinhos, oferecer uma solução duradoura
Um exemplo que ilustra o ponto ocorreu uma semana antes dos incêndios aos ônibus, que ficou conhecido como “o novo cangaço da Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro”, em que a classe política temerosa com a indicação de um novo delegado superintendente para a Polícia Federal, que poderia mudar o curso de investigações locais e avançar para a solução do caso do assassinato da vereadora não há secretário de Segurança, mas secretário de Polícia Civil e Secretário de Polícia Militar, cada um no seu quadrado). Segundo consta nos jornais, a indicação do novo secretário, Marcus Amin, foi feita pelo deputado estadual Márcio Canella, que abriga em seu gabinete a esposa de um cidadão condenado por homicídios e por chefiar uma milícia que opera, curiosamente, no mesmo território eleitoral do deputado.
Com as ações milicianas da última semana, como um pato manco, sem qualquer condição de esboçar alguma reação minimamente qualificada, o governador Cláudio Castro apelou para o proselitismo das bravatas vazias: “O crime organizado que não ouse desafiar o poder do Estado”.
Já as autoridades do Ministério da Justiça acertadamente disseram que iriam enviar uma força-tarefa, com a participação da Polícia Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), com foco em ações de inteligência e asfixia financeira dos grupos criminosos. O conjunto das declarações revelou, no entanto, que no afã de mostrar trabalho, tais autoridades continuam a tatear no escuro sem saber para qual direção seguir. No repertório falou-se em uma força-tarefa das organizações federais com a Polícia Civil fluminense, a fim de combater as milícias e as facções. Falou-se em enviar, além da Força Nacional, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, que iriam monitorar as fronteiras, portos e aeroportos, com o uso, inclusive, de drones. Não se sabe como essas forças contribuirão para enfrentar as milícias. O espetáculo midiático com a solução milagrosa está armado. Na sequência, alguns criminosos serão presos, as milícias voltarão a trabalhar no sapatinho e a crise será esquecida até a próxima rodada.
Ainda que o desafio seja enorme, existe solução para a segurança pública do Rio. Para tanto, o foco tem de ser total na maior organização criminosa, formada por milicianos e a banda podre das polícias e da política. A refundação das polícias fluminenses, com o expurgo dos maus policiais e a imposição de novos mecanismos de controle com a participação da sociedade civil é um primeiro passo urgente.
Para tanto, o governo federal poderia patrocinar um modelo de concertação, chamando para uma câmara de alto nível não apenas o Ministério Público Federal, mas o Supremo Tribunal Federal, de modo a garantir a celeridade e assertividade das ações. A curto prazo, uma força-tarefa formada pelo MPF, PF, Coaf e outras organizações federais se ocuparia de identificar e neutralizar os principais vértices das redes criminais que envolvem as milícias, além de estrangular o braço financeiro e econômico dessas organizações. A longo prazo, um trabalho conjunto com o governo do estado e prefeituras estruturaria um plano para a ocupação do espaço público pelo Estado, onde as milícias crescem economicamente.
Toda crise é também sempre uma oportunidade de mudanças. Ou será que permaneceremos nas soluções mágicas “infalíveis” que nos legaram o cenário descrito nos versos de Fausto Fawcett, Rio 40 graus (…) purgatório da beleza e do caos”? •
*Pesquisador do Ipea, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenador do Atlas da Violência.
Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Rio 40 graus’
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