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Perto de mil arquivos do governo dos EUA sobre o golpe de 1964 e a ditadura brasileira continuam secretos

Apelo. O presidente dos EUA tem uma oportunidade histórica – Imagem: Adam Schultz/Casa Branca Oficial
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O governo dos Estados Unidos ainda guarda cerca de mil arquivos secretos sobre o golpe de 1964 e a ditadura que durou 21 anos no Brasil. Queremos que o presidente Joe Biden retire o sigilo desses arquivos, para que possamos ter melhor compreensão sobre esse período histórico tão importante para os dois países.

Por meio do projeto “Abrindo Arquivos”, conseguimos acesso a 60 mil papéis produzidos por diferentes órgãos do governo norte-americano. Esses documentos foram fundamentais para que estudiosos do período pudessem montar grande parte do quebra-cabeça que conhecemos hoje. Mas faltam peças. Os cerca de mil arquivos aos quais pedimos acesso agora podem ajudar a compreender melhor, por exemplo, a colaboração dos EUA e o financiamento de setores da polícia brasileira envolvidos na perseguição, tortura e morte de dissidentes políticos.

O momento é oportuno. Em 2024, vamos relembrar os 60 anos do golpe de Estado de 1964 e os 200 anos do reconhecimento da Independência do Brasil pelos Estados Unidos. Além disso, temos um fato mais recente: o apoio importante que o governo Biden deu à democracia no Brasil, ao somar-se, em 2022, ao respaldo internacional ao sistema eleitoral brasileiro quando ele era duramente atacado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

Entendemos que a abertura desses arquivos seria um gesto de convergência entre os dois governos na direção da transparência e do apreço mútuo pela democracia. Os EUA não tiveram um papel positivo no golpe de 1964, é verdade. Mas a história não é estática. Se é verdade que um mal do passado não pode ser revertido, tampouco é verdade que tenhamos de permanecer paralisados por esse mal. Ao contrário, devemos empreender todos os esforços para, hoje, fazer pela democracia o que não foi feito antes. E a abertura desses arquivos seria um gesto importante nesse sentido.

Quebra-cabeças. Os documentos em sigilo podem esclarecer o financiamento norte-americano à repressão – Imagem: Acervo Correio da Manhã/Arquivo Nacional

No dia 5 de julho, enviamos uma carta a Biden com um pedido de desclassificação desses documentos. O pedido foi feito com base no “compromisso com a transparência e a defesa da democracia”, que ficou tão evidente nas declarações de respaldo à democracia brasileira na última eleição, vencida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O documento enviado a Biden no meio do ano foi assinado por um grupo de 16 organizações da sociedade civil brasileira e oito personalidades – todo o grupo bastante envolvido nas pesquisas sobre esse período histórico e na defesa da democracia.

O texto diz: “Ao desclassificar documentos relacionados à ditadura brasileira, o senhor demonstraria seu compromisso inabalável com a verdade, a responsabilidade e o Estado de Direito. Além disso, isso enviaria um sinal poderoso ao povo brasileiro de que os Estados Unidos estão do lado dele (do povo brasileiro) em sua busca por justiça e defesa da democracia. A desclassificação também forneceria informações valiosas sobre as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura brasileira e esclareceria o grau de envolvimento ou conhecimento dos Estados Unidos sobre esses eventos. Esse ato de transparência fortaleceria também as bases de nossa relação bilateral, fomentando confiança e colaboração em questões importantes como direitos humanos, democracia e estabilidade regional”.

A decisão é de Biden, mas o Congresso desempenha um papel muito importante na política externa nos EUA. Por isso, no dia 5 de dezembro, redobramos os esforços em Washington, realizando um briefing com deputados e senadores norte-americanos interessados na questão. Com apoio da deputada democrata Nydia Velázquez, eu e duas colegas brasileiras, a cientista política Maria Hermínia Tavares, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e Gabrielle Abreu, do Instituto Vladimir Herzog, fizemos uma exposição sobre a importância de conhecermos esses documentos secretos.

Recentemente, o Chile fez pedido semelhante a Washington, por ocasião dos 50 anos do golpe de Estado que derrubou o presidente socialista Salvador ­Allende e deu início aos 17 anos de ditadura comandada pelo general Augusto ­Pinochet. Após um pedido do Chile, o Departamento de Estado americano publicou o briefing diário da Presidência dos EUA dos dias 8 e 11 de setembro de 1973.

São peças fundamentais à compreensão do suporte norte-americano aos militares do Brasil

É sabido que os EUA desempenharam papel preponderante nos golpes e nas ditaduras cívico-militares que varreram a América Latina e o Caribe nos anos da Guerra Fria. Esse é um passado nefasto e bem documentado, sobre o qual sabemos muito, mas não o bastante.

Com o passar dos anos, fomos entendendo melhor as teias de cooperação dos governos militares, não apenas com os EUA, mas também entre si. O Brasil, por exemplo, onde o golpe foi dado em 1964, desempenhou papel preponderante no Chile, onde o golpe só ocorreria nove anos depois. Sabe-se hoje das linhas de crédito que foram abertas pelo governo brasileiro para a junta militar chilena, além da exportação de instrumentos de tortura e do conhecimento usado para submeter os prisioneiros do Estádio Nacional, em Santiago, aos suplícios que todos conhecemos.

Avançar no conhecimento sobre esses fatos é uma maneira eficaz de compreender cada vez melhor a história e de construir um futuro no qual os países das Américas estejam ligados por ideais comuns de promoção, defesa e preservação da democracia e dos direitos humanos, em contraste com os anos sombrios das ditaduras, que nunca serão esquecidas, mas poderão, com transparência e cooperação, ser mais bem estudadas e debatidas pelas novas gerações. •


*Historiador, professor de História e Cultura Brasileira na Universidade Brown, autor de 11 livros sobre o Brasil e presidente do Conselho Diretivo do Washington Brazil Office (WBO).

Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023.

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