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“Precisamos controlar a nossa obsessão com figura de Bolsonaro”, diz historiador

Para o professor da UFRJ João Cezar de Castro Rocha, bolsonarismo se equilibra em um tripé

Presidente Jair Bolsonaro. Foto: PR
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Depois de algumas semanas em queda, a popularidade de Jair Bolsonaro voltou a crescer, e agora atinge níveis superiores aos do início do mandato. Segundo a pesquisa Datafolha divulgada nessa quinta-feira 13, 37% dos brasileiros consideram seu governo ótimo ou bom. Já a rejeição caiu de 44% para 34%.

Em meio a 100 mil mortes pelo coronavírus, intriga tamanha mudança no humor do eleitorado. Por um lado, atribui-se a ao pagamento do auxílio emergencial de 600 reais. Entre quem recebeu o benefício, o entusiasmo supera por pouco a média geral: 42%. Mas não só. Dos que não requisitaram ajuda, 36% também estão contentes. Bolsonaro reverteu em dezessete pontos sua alta rejeição no Nordeste, de 52% para 35%. No Sudeste, sua aprovação subiu de 29% para 36%, enquanto a rejeição caiu de 47% para 39%.

 

Para o historiador e professor da UFRJ João Cezar de Castro Rocha, o bolsonarismo se equilibra em um tripé: a visão bélica da Doutrina de Segurança Nacional herdada da Guerra Fria, a linguagem codificada por Olavo de Carvalho e a estrutura de pensamento conspiratória trazida por um desconhecido livro brasileiro: o Orvil, um calhamaço de quase 1.000 páginas escrito nos anos finais da ditadura que conta a história do Brasil a partir de quatro supostas tomadas de poder pelos comunistas. “É uma teoria conspiratória labiríntica, mas que possui enorme coerência interna” pontua.

Até os anos 70, segundo o livro, a disputa do proletariado se deu pelas armas. E a partir de 1974, com a derrota da guerrilha do Araguaia, a esquerda teria feito uma ‘autocrítica’ se infiltrando nas redações, gabinetes e repartições públicas.

O Orvil era parte de um projeto secreto liderado pelo ministro do Exército de José Sarney, Leônidas Pires Gonçalves. Embargado pelo governo, passou décadas oculto — fotocópias eram distribuídas de mão em mão nas casernas. Só seria publicado oficialmente em 2012. Olavo de Carvalho, o guru dos Bolsonaro, chegou a receber do clã uma cópia do livro.

Segundo ele, a oposição erra ao concentrar esforços nos ataques à figura do presidente. “Quanto mais o sistema é atacado por fora, mais ele se fortalece. O bolsonarismo independe de Jair Bolsonaro. Mas atacá-lo como figura individual, paradoxalmente, acaba provando que ele está certo.” Sugere, em vez disso, que se concentre em decifrar essa linguagem para, então, superá-la.

Um dos crítico literários mais atuantes do País, Rocha é autor de uma profunda pesquisa sobre as guerras culturais bolsonaristas, que será lançada em breve como livro.

Confira a entrevista seguir.

CartaCapital: Como você resumiria a influência do Orvil no caldo de cultura bolsonarista?

JCCR: O Orvil mostra, não mais que em 30 ou 40 páginas, coisas fundamentais para, por exemplo, traduzir todos os tweets involuntariamente surrealistas do Carlos Bolsonaro. Segundo o livro, desde 1922, com a criação do PCB, não se passou um dia sequer sem que uma vasta conspiração internacional comunista, sob orientação da URSS, não tenha tentando implantar no Brasil uma ditadura do proletariado. Teríamos a União Soviética a China e o Brasil como países de dimensão continental sob a égide comunista. Foram quatro tentativas, as três primeiras militares. Mas depois de uma autocrítica da esquerda, que compreende que dado o tamanho do Brasil e a assimetria entre Forças Armadas e guerrilheiros, o poder jamais será tomado pelas armas. E então, em 1974, começa a quarta tentativa, a mais perigosa. Não mais pelas armas, mas pelos livros. Através da lenta, insidiosa e nunca explicitada infiltração nos aparelhos do estado e na cultura, arte, imprensa, entretenimento, educação pública. Tá tudo lá.

CC: E no governo Bolsonaro em si?

JCCR: Em tempos democráticos, você não pode eliminar fisicamente as pessoas. Mas, seguindo a narrativa do Orvil, você destrói as instituições que você considera terem sido aparelhadas. O governo Bolsonaro é arquiteto da destruição, cuja gênese e a direção estão inteiramente dadas no Orvil. Se as instituições estão aparelhadas, governar é menos importante. Sem guerra cultural e sem o ódio a um inimigo comum, não há bolsonarismo.

CC: O presidente tem evitado polêmicas, se aproximou do Centrão, inaugura obras… O bolsonarismo irá resistir a essa nova fase?

JCCR: Se esse tripé fizer sentido, ele apresenta um paradoxo. O êxito do bolsonarismo significa necessariamente o fracasso do governo Bolsonaro. Porque não se pode governar sem dados objetivos. Fatos não dependem de uma perspectiva de esquerda ou de direita.

CC: Como um livro que passou tanto tempo oculto pode se tornar base do bolsonarismo?

JCCR: Já havia uma doutrina draconiana. A Doutrina de Segurança Nacional recomenda identificar e eliminar o inimigo. Para o bolsonarista, o interlocutor não é um adversário político, e sim um inimigo a ser eliminado. Como se identifica esse inimigo? Pela matriz conspiratória do Orvil. O que faltava para que essa visão de mundo não ficasse restrita a alguns oficiais ressentidos? Faltava a linguagem.

CC: É onde Olavo entra nessa história.

JCCR: O Olavo teve papel decisivo para que essa doutrina se tornasse linguagem capaz de empolgar as pessoas. Isso ocorre quando Olavo se muda para os EUA, provavelmente influenciado pelas rádios americanas, eivada de conservadores e reacionários que foram fundamentais para a vitória de Trump. Fiz com a trilogia do Olavo o mesmo trabalho que fiz com o Orvil. A matriz narrativa é a mesma do Orvil. Mais sofisticada, claro. Mas, na essência, a mesma teoria conspiratória labiríntica. É aquela matriz, com algumas excentricidades filosofantes, visões curiosas e divertidas do panorama da histórica ocidental. Bolsonaro se beneficiou de uma convergência fortuita desses três elementos em 2018.

“É um equívoco dizer que 2018 foi vencido pelo antipetismo.”

CC: Em 2018, a oposição bateu firme na afinidade entre Bolsonaro e a ditadura. Mas isso não sensibilizou o eleitorado. 

JCCR: Precisamos controlar a nossa obsessão em relação à figura de Jair Bolsonaro, e prestar mais atenção no sistema que o tornou possível. A oposição parece um pouco perdida porque, em lugar de realmente discutir o bolsonarismo, se concentra na figura. Como o bolsonarismo é sobretudo um sistema de crenças, os ataques a ele paradoxalmente reforçam essa posição. Precisamos recuperar linguagem. E em algum momento, ter uma leitura mais fina de 2018. É um equívoco dizer que 2018 foi vencido pelo antipetismo.

CC: Isso não explica a rejeição ao candidato do PT?

JCCR: O antipetismo existe desde 1980. A novidade é o antilulismo. Devido à Lava Jato, e a uma insatisfação absolutamente legítima da sociedade brasileira, o antipetismo conheceu pela primeira vez outra forte rejeição, o antilulismo. Essa junção foi decisiva: antipetismo, antilulismo, lavajatismo, reação antissistema. A esquerda, aliás, não deve recusar toda pauta bolsonarista.

CC: A quais pautas você se refere? 

JCCR: O bolsonarismo não resistiria sem uma pulsão antissistêmica. Essa pauta é legítima, uma pauta de esquerda. Não podemos permitir que seja uma pauta bolsonarista. O sistema político nunca esteve à altura das expectativas criadas pela Constituição de 88. Os três poderes se transformaram em castelos blindados para preservar benefícios, privilégios e um conjunto de favores e facilidades que são sistematicamente negados a todos nós. Para o bolsonarismo, o que se trata é de extinguir o STF, manietar o Congresso e estabelecer um governo autoritário de ação direta, sem a política. A guerra cultural é a ponta de lança desse projeto.

CC: Há exemplos a seguir?

JCCR: Um exemplo recente é o de López Obrador, no México. O Obrador saiu do PRD, um grande partido de esquerda, e fundou o próprio. Criou um enorme movimento cívico, com voluntários de verdade, campanhas de porta em porta. Ele inventou linguagem. A cultura mexicana é muito formal, senhora, senhor… O humor dos jovens foi um diferencial enorme. A Cambridge Analytica tentou atuar no México. E militância do Lopez Obrador transformou tudo em piada. Durante dois anos, eles desmontaram, com o humor e com consciência cívica e cidadã, durante uma máquina de notícias falsas fundamental para as as duas eleições anteriores.

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