CartaCapital

Nirlando, militante da palavra

“Chega de fingir que nós repórteres somos robôs e que há normalidade nessa realidade tão anormal”

jornalista Nirlando Beirão. Foto: Reprodução.
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Quando as redações eram ultrapovoadas, jornalistas vivendo sob pilhas de jornais, dossiês, revistas e velhos computadores, Nirlando Beirão já se destacava e possuía saleta exclusiva. Podia entrar e sair da sala dos mais graduados executivos sem se anunciar. Então, quando finalmente fomos levados a conhecê-lo em sua sala, no início do trabalho como editores de cultura em CartaCapital, a expectativa de que fosse pedante ou denotasse ranços hierárquicos rapidamente caiu por terra. Ele nos recebeu irmanamente, demonstrou conhecimento de nosso trabalho, admiração e um espírito de alto cavalheirismo.

Por um breve período, entre agosto de 2017 e abril de 2019, Nirlando Beirão foi nosso chefe. Nesse tempo, nunca nos endereçou palavras que não fossem de incentivo e entusiasmo. Em maio de 2018, já doente, afastado do dia a dia da redação, concordou em nos receber em seu apartamento em São Paulo. Passamos uma tarde bebendo vinhos e falando da revista, do jornalismo, da cultura, da política e do Brasil. Foi um encontro mais que agradável, mas também muito dolorido. Estávamos diante de um homem completamente vivaz e bem-humorado, mas já parecendo ter enormes limitações físicas e ciente da iminência da morte.

Nirlando seguiu produzindo, desafiando a esclerose lateral amiotrófica (ELA) até o último momento de sua vida com a mente sempre lúcida, mas com um corpo que insistia em se despedir lentamente dele. No momento de nossa visita à sua casa, em Higienópolis, ele testava uma cadeira de rodas auto-suficiente já a exigir reparos e que não apenas lhe restituía artificialmente a mobilidade, mas testava sua paciência. Enquanto falava sobre as peculiaridades do vinho branco e do tinto, também explicava com naturalidade quais eram as limitações que enfrentava no momento e como se preparava para as próximas fases da doença. Revelou o tema do livro que escrevia sobre sua experiência e os antepassados portugueses. Já então era realidade o abismo político chamado Jair Bolsonaro, e se tornava impossível não relacionar as coisas.

A doença o encapsulava fisicamente, mas a mente continuava funcionando a mil em um corpo que se debilitava progressivamente – de certa forma, uma metáfora do mundo atual submetido ao isolamento por um vírus invisível e letal, ou do Brasil submetido ao arbítrio de um personagem da política que combate o raciocínio, a lucidez, a fraternidade e a autogestão.

A curta experiência na proximidade de Nirlando Beirão não nos capacitou para chancelar as qualidades de sua trajetória jornalística, longa e premiada, atestada por tantos grandes repórteres nessas últimas horas (Sérgio Augusto, Paulo Moreira Leite, Mino Carta, Sergio Lírio, Helio Campos Mello, Afonso Borges, Mauricio Stycer), mas foi suficiente para que tivéssemos a convicção de sua dimensão humana. “Fomos parceiros na Abril, saímos juntos da Veja pra fazer com Mino Carta a IstoÉ, cuja editoria de cultura tocamos juntos em clima de permanente vibração e harmonia”, recordou via Twitter o crítico Sérgio Augusto, expoente do tempo em que jornalistas não se confundiam com máquinas.

“Chega de fingir que nós repórteres somos robôs e que há normalidade nessa realidade tão anormal”, disse na entrevista que nos deu em maio de 2019, por ocasião do lançamento de Meus Começos e Meu Fim (Companhia das Letras, 192 páginas, 50 reais). Refletia sobre a desumanização dos jornalistas, quando o inferno ainda estava bem menos quente que nestes dias atuais de combater Bolsonaro e coronavírus. Por e-mail, já editou a si mesmo com respostas simples e diretas, mas sem deixar de lado a militância das palavras. Suas respostas, que republicamos em versão integral inédita, parecem hoje ainda mais fortes e contundentes do que pareciam quando ele as escreveu.

CartaCapital: Como está sua saúde desde que concluiu o livro? Já teria adendos a fazer à história que conta em Meus Começos e Meu Fim?

Nirlando Beirão: Hoje estou melhor do que amanhã, apesar de todo o esforço e da competência do exército de aventais brancos que me cerca. Esta é a sina – às vezes imperceptível – de uma doença degenerativa. Escrevi o livro com a mão direita, continuo escrevendo.

CC: A certa altura você se pergunta se somatizou o 7 a 1 da Alemanha, o Donald Trump, o impeachment de Dilma Rousseff, o Jair Bolsonaro… Ainda que o pensamento não ajude a resolver as coisas, faz sentido viver a dor de um país no próprio corpo, na própria mente?

NB: Tudo isso machuca, mas inconscientemente acabei interpondo um véu leitoso entre mim e a realidade. Não que eu queira me alienar, nunca. É uma defesa involuntária. Sempre tive a tendência de desligar o botão do pânico. A primeira vez que percebi a película protetora foi passando de forma banal pela Paulista. Foi como se desmaiassem som e imagem.

CC: Por que a culpa está tão presente no seu livro? É o avô padre Beirão? É a avó mulher do padre? É a naturalidade mineira? É o catolicismo? É, de alguma forma, uma culpa que você próprio sente?

NB: Estranhei a rezação excessiva em família quando meu avô morreu. O catolicismo pune desde o início. Uma vez o Glauber me disse: Sabe por que eu sou livre? Nasci em família protestante, sem a ideia do pecado original. Criança, eu sofria de culpas que nem eram minhas.

CC: Você conta no livro que começou no jornalismo em 13 de junho de 1967. Era um momento agudo da vida nacional, e já se desenrolava o processo que no ano seguinte culminaria no AI-5. Do que tem acompanhado do processo atual, que paralelos traçaria entre os dois momentos, o da sua juventude e o dos 69 anos de idade?

NB: 70 anos, cheguei lá. A diferença é que, apesar do entorno, a gente acreditava no jornalismo e no futuro do Brasil. Confesso agora certo desalento.

CC: Quais foram e são os melhores momentos para fazer jornalismo no Brasil? Os de maior liberdade ou os de grande aperto institucional?

NB: Do ponto de vista profissional, minha geração foi privilegiada. Havia várias empresas jornalísticas, investindo, crescendo. Hoje as que sobraram, com raras exceções, desistiram do jornalismo, só pensam no business. Aliás, a indústria de comunicação, assim como toda a nossa indústria, é muito atrasada. Ainda bem que existe a guerrilha da internet.

CC: O que a profissão do jornalismo tem, para você, de mais feio e de mais bonito? Ainda vale a pena ser jornalista em 2019?

NB: Acho que respondi acima. O jornalismo que mobiliza, que emociona, tem seu lugar. Chega de fingir que nós repórteres somos robôs e que há normalidade nessa realidade tão anormal.

CC: Você relata que sua condição, ou doença, não se pauta principalmente pela dor. Isso é bom? Ou seria melhor sentir dor?

NB: A dor intrínseca existe. Tem dias que acordo Frank Capra, it’s a wonderful world, mas tem dias que acordo Franz Kafka (não confundir com kafta), me sentindo um inseto.

CC: Seu avô, António Beirão, teve a coragem de romper com um elo moral, a Igreja, para fugir com sua avó e largar a batina. Ele representa seus começos, como diz o título, que se refere a duas extremidades da vida. Dessa forma, quais são os rompimentos fundamentais que a sua maturidade jornalística e literária lhe propiciaram?

NB: O primeiro rompimento foi com a culpa, o temor e os dogmas que a religião infringe. No jornalismo, logo rompi com a hierarquia dos temas. Como se uma notícia de esporte – que contagia milhares e milhares de leitores – fosse mais desprezível que o solene editorial do jornal. O curso de Antropologia, num momento sombrio da universidade, início dos anos 70, foi importante para reiterar que as pessoas são diferentes. Do Country Club aos ianomâmis, cada tribo tem seu jeito de comer, dormir, dançar, fazer sexo, sobreviver. Ninguém é superior a ninguém. A propósito, visitei uma oca coletiva dos ianomâmis. É tão grandiosa, tão imponente quanto as catedrais góticas. É curiosa a Antropologia: nasceu porque os poderes coloniais precisavam entender quem eram aqueles “primitivos” que eles estavam espoliando. Felizmente, os antropólogos foram bem além. A psicanálise, que frequento há mais tempo que o Woody Allen, me fez romper com certos fantasmas íntimos.

CC: Anteriormente, você publicou livros sobre a churrascaria Rodeio, sobre o arquiteto Claudio Bernardes, sobre o Corinthians, sobre Sergio Motta, o “trator de FHC”, sobre o Bar Original. Sua trajetória literária não é marcada pela radicalidade, mas principalmente pela circunstancialidade. O que significa para você publicar agora uma obra que se caracteriza pelo mergulho mais profundo, doloroso e visceral na experiência humana mais extrema?

NB: Não chamaria propriamente de literária. Escrevi livros de encomenda, alguns como ghost-writer. Estes citados por acaso gostei de escrever: um passeio pelos Jardins, em São Paulo,  a história dos bares e cafés do mundo, a vida e obra de um arquiteto talentoso e carismático que infelizmente morreu num desastre estúpido logo depois… Mas o livro que mexeu com minhas entranhas é este de agora.

CC: O seu livro foi escrito em uma circunstância que ultrapassa a questão do julgamento do autor pelo crítico e pelo leitor. Dessa forma, se posta em uma condição singular, que o posiciona além da ansiedade e da repercussão. Você o entende assim? Você o vê como algo que vai além do exercício do estilo e da vaidade literários?

NB: A vaidade talvez seja esta: é um livro, tem sua compostura. Embora eu ironize a pose em torno do tema leitura, confesso que tinha pensado antes em escrever um blog, uma espécie de diário da doença. Tinha até título: Neuro e Neuras. Mas a internet me acovardou. Imaginei o dia em que um internauta impaciente iria me interpelar: E aí, cara, vai morrer ou não vai?

CC: Livros escritos em situações de saúde debilitada marcam a literatura de grandes autores, como Virginia Woolf, João Cabral, Machado de Assis. E, mais recentemente, Christopher Hitchens, em Últimas Palavras. Hitchens teve o humor, a mordacidade e o sarcasmo potencializados pela experiência. Quais são os sentimentos e qualidades que Meus Começos e Meu Fim destacaram em você?

NB: Na comparação, prefiro ficar com o Christopher Hitchens. A narrativa dele na Vanity Fair me deliciou, se é que dá pra usar a palavra em tais circunstâncias. Até o absolvi do pecado de ter defendido a invasão do Iraque pelo Bush. Eu morava na Califórnia em 2003 e o assisti falando besteira em Berkeley – mas com carisma e humor. O que mudou em mim? Talvez perder o medo. Talvez aprender a receber o carinho que nem sei se mereço.

CC: O Nirlando Beirão, titular da coluna QI, é um homem sofisticado, bon vivant, que sabe admirar tanto os bons vinhos quanto uma capa inglesa Burberry. Mas que confidencia imaginar que a boa velhice incluía uma boina vermelha. Por qual dessas imagens extremas você prefere ser lembrado?

NB: Roupa é uma fantasia, literalmente, que vc expressa ali. De Lady Gaga ao Duque de Kent. Nas viagens, eu comprava roupas fora do meu padrão, na esperança de me transformar. Comprei de calça de capoeirista, de algodão cru, no Mercado Modelo de Salvador, a paletó Harry’s Tweed na City de Londres. Eu sou assumidamente esquerda-foie gras. Prefiro, de todo modo, a boina. Uma vez, o Leon Ferrari recebeu em Buenos Aires este repórter brasileiro perplexo com os enigmas da política argentina. Avisou que iria chamar uns amigos sociólogos, jornalistas, cientistas políticos, artistas como ele. Foram chegando, um a um, os velhinhos. Todos de boina. Parecia congresso da 2a. Internacional.

CC: A sua atual cabeceira de livros inclui Philip Roth, Ian McEwan, Gabriel García Márquez, Salman Rushdie, Edward Said, a revista Granta. Revela tanto o perfil de um homem tão eclético quanto culto. Qual livro não leu, não lerá, mas se arrepende disso?

NB: Cheguei a estudar um pouco de alemão porque queria ler A Montanha Mágica no original. Não li nem no original nem em português. Tenho uma versão em inglês que me espia lá do alto da estante.

CC: No livro, afirma que sempre foi mais de calar do que falar. Um bom jornalista fala e ouve muito, mas não costuma se calar diante do que deve ser dito, seja a quem for. O que e a quem você gostaria de ter dito algo, mas se calou?

NB: Falo por escrito. Sou – desculpa a pretensão – militante da palavra. Tenho convicções. Mas a minha “condição”, como dizem os médicos, me leva muito mais a uma autocrítica íntima sobre tudo o que não fiz. Se fosse botar em papel tudo o que devia ter feito, e não fiz, dava para encher toda a biblioteca de Alexandria. É possível que ao longo da carreira e da vida eu tenha engolido um ou outro sapo. Bem menos, asseguro, do que o ministro da Justiça atual e provisório.

CC: Você afirma que adora o jornalismo desimportante, o jornalismo pop, das franjas, da periferia. E lembra que fez colunismo social com black-tie emprestado. Quem faz esses tipos de jornalismo nos dias de hoje?

NB: Passei pelo colunismo na época em que falava muito em neocolunismo, ou new columnism, como preferia a categoria. Menos festa, mais notícia. Zózimo Barroso de Amaral, no JB, depois no Globo, era a referencia. E o Boechat. E a Joyce. Hoje o colunista, coitado, é obrigado a conviver com gente muito xexelenta. Perto desse rebotalho que está no poder, o governo Collor, com o qual convivi, era a corte de Lorenzo di Medici. Mas  o jornalismo pop venceu. Vocês estão aí pra não me deixar mentir. A historiografia contemporânea também se apoia muito no fait divers.

CC: Lula livre? Por quê?

NB: Porque a matilha de Curitiba só o condenou, sem prova alguma, para concretizar a etapa dois do golpe e impedir a eleição dele. E porque ele é o único líder de verdade que o Brasil tem.

CC: Você pensa na hipótese de seu final vir a ser completamente diferente daquele dos 69 anos do avô Beirão? Gostaria que isso acontecesse?

NB: Escrevi que tenho o duvidoso privilégio de pensar todos os dias na minha morte. As fantasias variam. Pode ser uma suprema arrogância essa, mas não tenho medo.

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