CartaCapital
Nas mãos do inimigo
Palestinos na Cisjordânia são alvo da revanche de soldados e colonos israelenses


Mahmoud Abu Latifa cortava o cabelo preto e brilhante de seu sobrinho no estilo “cuia”, e estremeceu ao ouvir as notícias na tevê sobre os bombardeios em Gaza. “É só o que eu faço: corto cabelos e assisto ao noticiário. Isso está me deixando doente. Quero me livrar desta guerra horrível”, disse. Na véspera, Abu Latifa tinha decidido comprar pão numa cidade que exigia que ele passasse perto do posto de controle de Qalandiya, uma fortaleza com torres de vigilância e paredes de concreto queimadas, cobertas de grafite e pinturas com figuras políticas palestinas. “Percebi como fui idiota em passar por ali. Eles podem atirar em você facilmente e não se importam”, afirmou, em referência aos militares israelenses estacionados no posto de controle. “Eles querem vingança. Parece que estão dizendo: ‘Ou nós morremos ou você morre’. Não há meio-termo.”
O ataque sem precedentes do Hamas, que matou mais de 1,3 mil israelenses, com cerca de 130 mantidos em cativeiro em Gaza, foi recebido com uma dura reação das forças israelenses em toda a Cisjordânia. Além dos postos de controle fechados e das estradas vazias, os moradores de Ramallah temiam o aumento da violência por parte das forças militares e de segurança israelenses, assim como dos cerca de 700 mil colonos israelenses espalhados pela região.
O Ministério da Saúde palestino disse que 54 cidadãos, incluindo crianças, foram mortos e mais de 1,1 mil ficaram feridos na Cisjordânia desde o ataque do Hamas a Israel. Grupos de monitoramento disseram que os mortos incluem menores baleados na cabeça, no peito ou no abdome com munição viva. Atos violentos fatais cometidos por colonos israelenses foram registrados duas vezes em vídeo. A organização israelense de direitos humanos B’Tselem divulgou imagens de um colono na aldeia de At-Tuwani, ao sul de Hebron, empurrando um palestino antes de atirar nele à queima-roupa, enquanto o homem caía de joelhos, com um soldado das Forças de Defesa de Israel parado nas proximidades.
Na véspera, imagens de vídeo mostraram colonos israelenses armados em um ataque à aldeia de Qusra, ao sul de Nablus. “Cinco colonos chegaram à aldeia vindos do sudeste. Ao menos um deles tinha uma arma. Eles foram à casa de Awad Odeh, que foi morto pelos colonos em 2014”, disse Abdul Azim al-Wadi, líder do conselho da aldeia. “Eles atiraram em seu filho, Awad, que está gravemente ferido, e em sua filha de 8 anos, que ficou ferida no ombro. Eles queriam matar, miravam na cabeça. Os aldeões saíram e as FDI também chegaram. Eles dispararam contra os moradores”, descreveu. No total, quatro foram mortos no ataque.
Israel ocupa a Cisjordânia desde 1967 e impõe severas restrições aos palestinos
Os colonos também atacaram o cortejo fúnebre em Qusra no dia seguinte. “Meu irmão e meu sobrinho foram mortos”, disse Wadi. “Estavam limpando a estrada para o cortejo passar e foram atacados tanto pelos colonos quanto pelas forças de segurança. Eles atiraram no meu irmão Ibrahim Wadi e no seu filho Ahmed a sangue-frio. Estou no funeral deles agora”, contou, com a voz tensa de tristeza.
Israel ocupa a Cisjordânia desde que capturou a região em 1967, impondo um sistema de controle no qual centenas de milhares de colonos israelenses podem ter acesso à água e expandir suas casas, bem como utilizar transporte rápido e eficaz para o território israelense. Os palestinos e os beduínos da Cisjordânia enfrentam há décadas uma realidade completamente diferente, com postos de controle lotados, transportes difíceis e pouca liberdade de circulação. Várias organizações de direitos humanos, entre elas a Human Rights Watch, a Anistia Internacional e a B’Tselem, caracterizam esse sistema de discriminação como “crime de apartheid”.
Sentado entre pilhas de canos e latas de tinta em sua loja de ferragens, Abu Mahmoud bebia café e fumava um cigarro, enquanto reclamava dos soldados israelenses que tinham atacado o campo de refugiados vizinho de Qalandiya naquela manhã. “Desta vez, as coisas estão realmente difíceis. São dias duros”, avaliou. “Você podia sentir o cheiro do gás lacrimogêneo aqui na rua.” A estrada para o posto de controle de Qalandiya estava coberta de fuligem preta e acre dos pneus queimados durante confrontos com militares israelenses estacionados lá, e a passagem foi fechada. Dias antes, dois menores foram baleados no posto durante um confronto com soldados, que responderam com tiros reais depois de um grupo atirar pedras e coquetéis molotov. “Todos os postos de controle estão fechados, então nenhum trabalhador consegue trabalhar. Todo mundo está em casa assistindo ao noticiário”, afirmou Abu Mahmoud. “Tudo parou, a economia está falindo. Qalandiya é um meio de milhares de pessoas chegarem ao trabalho e agora está fechada, então o que podemos fazer? Está afetando sua situação financeira. Como eles podem se sustentar? Hebron, Nablus, todas as cidades da Cisjordânia estão isoladas umas das outras.”
Uma onda de violência ainda maior percorreu a Cisjordânia no decorrer dos dias. Na sexta-feira 13, dia tradicional de protestos, vieram notícias de confrontos armados entre militares israelenses e palestinos em bolsões rurais e estradas que levam a postos de controle em toda a Cisjordânia, bem como ataques de colonos. Ao menos 14 civis foram mortos em pouco mais de 24 horas.
O governo israelense arma os colonos e os soldados fazem vistas grossas à violência contra os árabes – Imagem: Menahen Kahana/AFP e Jack Guez/AFP
Muitos em toda a Cisjordânia lamentaram a liderança esclerosada e envelhecida da Autoridade Palestina, especialmente seu presidente, Mahmoud Abbas, de 87 anos, que está no poder há quase duas décadas e adiou várias eleições marcadas durante esse período. “Se os colonos atacarem Ramallah, os primeiros a protegê-los serão os membros da Autoridade Palestina”, reclama Ramez Abu Jaber, 24 anos, do campo de refugiados de Qaddura, enquanto prepara abacate batido em sua loja perto da Praça Al-Manara. “Os militares israelenses protegem os colonos. Mas a Autoridade Palestina também os protege, e não a nós.” Abu Jaber acrescentou: “Se a Autoridade Palestina não consegue cumprir suas obrigações, deveria sair e deixar outros fazerem o trabalho. Nós podemos lidar com isso”.
Enquanto a maioria murmurava ou gritava sua frustração diante da falta de liderança política, a história que surge na Cisjordânia é de uma brutalidade crescente. Alguns adquirem armas freneticamente ou recorrem à violência, pois temem que não exista outra opção diante da pressão crescente e mortífera das forças de segurança e dos colonos israelenses. Ao mesmo tempo, a mídia israelense informou que o ministro de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, de extrema-direita, ordenou que 10 mil rifles de assalto fossem distribuídos entre os assentamentos israelenses na Cisjordânia e cidades com populações mistas, israelenses e palestinas, dos quais 4 mil foram entregues imediatamente.
Enquanto vendedores e clientes negociavam no mercado de verduras de Ramallah, a farmacêutica Ola Sherif, de jaleco branco, encostou-se num carro para uma pausa do trabalho. Gente de toda a Cisjordânia, incluídos muitos de seus clientes, disse ela, armazenavam medicamentos freneticamente, por temerem um confinamento prolongado e a possível eclosão de combates, para não falar em uma forte redução da entrada de mercadorias provenientes de Israel. Muitos, entre eles Ola Sherif, queixaram-se de que os preços dos alimentos dispararam, especialmente dos produtos frescos. “Nunca vi nada parecido”, declarou. “As pessoas estão em pânico porque temem que os medicamentos acabem, por isso compram em grandes quantidades. Alguns medicamentos estão presos no porto. Não tenho Nexium, usado para tratar problemas de estômago e esôfago, nem fórmula para bebês. Não tenho nenhuma.” A farmacêutica continua: “Tememos que haja uma grave escassez. As pessoas estão indo aos supermercados para comprar tudo. Você entra e vê que não tem pão. Não conseguimos encontrar farinha”. A escola de seu filho, acrescentou, adotou as aulas online porque temia o trajeto dos ônibus escolares por estradas que passam perto de assentamentos e instalações militares israelenses. “É claro que as pessoas estão com medo”, conclui. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nas mãos do inimigo’
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