CartaCapital
Milícia lavajatista
Mensagens inéditas mostram que a força-tarefa de Curitiba também conspirou contra Ciro Gomes


Trechos inéditos das conversas entre procuradores da Lava Jato mostram que abusos sistemáticos para punir críticos e adversários políticos não se restringiam a Lula e ao PT. Este novo material, parte do arquivo entregue a Glenn Greenwald em junho de 2019, oferece outras pistas sobre o modus operandi da força-tarefa e joga luz sobre a motivação por trás de uma recente operação que teve como alvo dois detratores de longa data da Lava Jato: Ciro Gomes e seu irmão, o senador Cid Gomes.
Os chats mostram integrantes da força-tarefa de Curitiba planejando formas de explorar seus poderes investigativos para obter e vazar para a mídia informações que constrangessem seus desafetos. Além dos irmãos Gomes, também é mencionado nas conversas Rodrigo Maia, então presidente da Câmara dos Deputados, cujo “crime” foi se opor a partes do pacote anticrime e da agenda do então ministro Sergio Moro.
Em dezembro passado, a Polícia Federal conduziu uma operação contra os irmãos Gomes, invadindo suas casas e cumprindo mandados de busca e apreensão. A investigação decorre de um inquérito aberto em 2017 e apura suposto recebimento de propina nas obras para a Copa do Mundo de 2014, quando Cid Gomes era governador do Ceará. Chama atenção o fato de a PF ter agido poucos meses antes do início da campanha eleitoral, especialmente se tratando de uma investigação tão antiga.
Os procuradores da Lava Jato há muito tempo consideram Ciro e Cid seus inimigos políticos. Ciro, em particular, fez reiteradas críticas tanto à operação quanto ao ex-ministro Sergio Moro. Nos trechos dos chats em questão, publicados em primeira mão por CartaCapital, membros da força-tarefa, citando essas críticas, explicitamente perguntaram se havia algo que pudesse ser usado contra Ciro no material coletado pelas investigações.
“Louquinha“. A procuradora Laura Tessler não escondia o desejo de usar a PF para constranger os irmãos Gomes
No dia 13 de fevereiro de 2019, no grupo chamado “Filhos do Januário 4”, a procuradora Laura Tessler, sem nenhum motivo aparente, enviou uma mensagem perguntando se havia algo contra Ciro, e acrescentou que estaria “louquinha pra fazer uma visita pra ele”. Um de seus colegas respondeu que o ex-presidente da OAS Léo Pinheiro havia feito acusações contra Ciro, mas que depois voltou atrás. Outra procuradora, Jerusa Viecili, emendou: “Acordo da Galvão tem”. Tessler comemorou: “Massa!”
Não há qualquer ambiguidade no que Tessler quis dizer: a procuradora queria encontrar um pretexto para realizar uma operação contra Ciro — exatamente como a que a PF fez no mês passado. A procuradora ganhou notoriedade por se envolver em muitas das controvérsias trazidas à tona pelas mensagens vazadas. Na mais notória delas, ironizou a doença da ex-primeira-dama Marisa Letícia, depois de Lula afirmar que a saúde dela piorara por conta da perseguição da Lava Jato. Ela também defendeu a divulgação da delação de Antonio Palocci, mesmo sabendo que as acusações feitas por ele careciam de evidências documentais. “Não tem corroboração nenhuma. Mas vai ser divertido detonar um pouco mais a imagem do 9”, referindo-se a Lula pelo apelido pejorativo.
Viecili também teve divulgadas mensagens em que ironiza a morte de dona Marisa, e se desculpou publicamente com Lula após a divulgação. Ela é até hoje a única pessoa de toda a força-tarefa a ter se desculpado com Lula por esse – ou qualquer outro – abuso cometido.
Para o criminalista Augusto de Arruda Botelho, as conversas demonstram que o ânimo pessoal de alguns procuradores em relação a certas pessoas não era simplesmente sobre o necessário combate à corrupção. “Sempre houve, e hoje nós temos a comprovação disso, um interesse pessoal e político por trás de muitas das acusações.” Por investigar fatos que ocorreram há muitos anos, pontua, não haveria necessidade de um mandado de busca e apreensão contra os irmãos Gomes. “Para prender, por exemplo, documentos de contratos e de eventuais negócios que foram feitos muitos anos atrás. Há a necessidade efetivamente de uma busca e apreensão nesse momento?”
Ao comentar os chats em que procuradores tramam contra ele, Ciro disse a CartaCapital que se tratava de “mais uma prova de que a organização criminosa comandada por Moro e Dallagnol transformou a estrutura da Justiça em um covil de milicianos”. E completou: “O tempo está servindo para desmascarar esse método nefasto, mas seus efeitos, infelizmente, ainda vão perdurar. A operação abusiva que sofri recentemente é um reflexo tardio desse lavajatismo que ainda sobrevive”.
Nos diálogos vazados, procuradores uscam pretextos para colocar a PF na porta da casa do pedetista. Rodrigo Maia era outro alvo
Outro exemplo desse tipo de mentalidade vingativa contra alguém considerado um oponente político veio um mês após a conspiração contra Ciro. O alvo era o então presidente da Câmara e desafeto de Moro, Rodrigo Maia. Em resposta a uma matéria da Folha de S.Paulo postada por Deltan Dallagnol, o grupo se lamentou por Moro não agir com a veemência necessária contra Maia. O conchavo envolveu diversos procuradores da força-tarefa previamente implicados em reportagens da Vaza Jato.
Especificamente, o artigo diz que Maia se irritou com o fato de Moro não ter demonstrado interesse em negociar com a Câmara, colocando a Casa numa posição de subserviência ao Executivo. “FDP”, respondeu o procurador Athayde Ribeiro Costa sobre a notícia: “Maia está gostando do poder e com o governo fraco colocou as mangas de fora”.
Viecili ecoou a preocupação de Athayde: “Nessa confusão toda que virou o pais (sic). Maia vai crescendo. até pelas trapalhadas do executivo que acabam atingindo e diminuindo o prestígio de Moro”. Outros procuradores reagiram com fúria, sugerindo maneiras com as quais o ex-juiz poderia puni-lo. O procurador Orlando Martello sugeriu que Moro instigasse uma campanha contra Maia nas redes sociais: “Moro pode vir(ar) o jogo, jogar a sociedade contra Maia”.
Já para o procurador Antônio Carlos Welter, atacar a reputação de Maia não seria suficiente. Seria necessário mobilizar o poder do Ministério da Justiça e da Polícia Federal contra o deputado: “Ele tem que virar o jogo trabalhando com MJ. Se a briga for pelas redes sociais, vai ser outra m. Tem que criar uma pauta positiva. Botar a PF para trabalhar”.
“Essa pequena parte das conversas da Vaza Jato é a prova que existia uma organização criminosa, comandada pelo ex-ministro Moro, que contava com vários procuradores e parte do Ministério Público”, diz Maia. Ainda segundo o deputado, os procuradores teriam a mesma concepção de organização das milícias no Rio de Janeiro. “São milicianos da mesma forma. O que vemos é que foi montada uma organização criminosa para avançar em cima das instituições para que esse grupo tomasse o poder.” Procurados por CartaCapital, os procuradores da República atualmente responsáveis pela Lava Jato preferiram não se manifestar. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Milícia lavajatista”
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