CartaCapital
Marcha à ré
Contrariando a tendência mundial de descriminalização, o Senado reafirma a violenta e ineficaz “guerra às drogas”


A chantagem política no Congresso, somada ao suprassumo do reacionarismo e à falta de mobilização social, levaram mais uma vez o Brasil a desprezar as evidências científicas e a ignorar um avanço legal adotado em um número expressivo de países ocidentais. Na terça-feira 16, o Senado aprovou por 52 votos a 9 a Proposta de Emenda Constitucional que tipifica como crime “a posse ou porte de qualquer quantidade de droga”. A PEC tem como autor o próprio presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, do PSD, e não traz alteração significativa à Lei de Entorpecentes em vigor desde 2006. Sua aprovação é, porém, mais um round da briga do Parlamento com o Supremo Tribunal Federal. Desde agosto do ano passado, o STF julga uma ação que poderia liberar o porte de maconha para consumo pessoal e estabelecer um critério objetivo para diferenciar usuários de traficantes: a quantidade de narcótico apreendido. Após o pedido de vista do ministro José Dias Toffoli, a votação foi interrompida com 5 votos favoráveis à mudança e 3 contrários.
Não há previsão para o julgamento ser retomado, mas, nesse ínterim, a decisão do Senado aproxima o Brasil de ditaduras e teocracias que adotam uma política de tolerância zero em relação às drogas. Além de contribuir para o encarceramento em massa e de afastar dependentes químicos de tratamentos, devido ao temor de sofrer processos criminais, a iniciativa impede o País de avançar na regulamentação da Cannabis para fins medicinais e recreativos, uma indústria que movimentou 29,5 bilhões de dólares no ano passado ao redor do mundo e pode chegar a 58 bilhões em 2028, segundo um estudo da BDSA, principal empresa de pesquisa do setor.
O Brasil possui a terceira maior população carcerária do planeta, inflada com acusados de narcotráfico
Desde a virada do século, ao menos 21 países adotaram leis para legalizar ou descriminalizar do uso pessoal de maconha, bem como dos numerosos subprodutos explorados pela indústria farmacêutica. O ingresso mais recente no clube foi o da Alemanha, onde, desde o começo do mês, existem leis para reger a produção e o consumo de Cannabis, e qualquer cidadão pode plantar mudas em casa, além de portar até 25 gramas da erva.
A significativa adesão alemã tende a impulsionar outras leis nacionais semelhantes nos próximos anos. Desde 2022, a legalização completa aconteceu em Malta e Luxemburgo, um passo à frente da Europa em uma direção indicada pelas sucessivas leis de descriminalização iniciadas por Portugal, em 2001, e posteriormente adotadas por Bélgica, Eslovênia, República Tcheca, Suíça, Croácia, Itália, Áustria e Geórgia. Famosa por suas coffee shops, onde ninguém é incomodado se acender um baseado, a Holanda, curiosamente, jamais legalizou ou sequer descriminalizou qualquer tipo de droga, tendo sido apenas pioneira, ainda na década de 1970, de uma política de “vista grossa” emulada em maior ou menor grau por outras nações europeias. Portugal, por sua vez, tornou-se referência pela ousadia de suas leis de descriminalização, que, além da maconha, abrangem outros tipos de narcóticos, como cocaína e heroína. Mais recentemente, os portugueses incluíram as drogas sintéticas no rol de substâncias toleradas. Adendo: em nenhum desses países houve uma explosão do consumo, das mortes e da violência, uma fake news repetida pelos proibicionistas.
Agora, os alemães podem plantar mudas em casa e portar até 25 gramas da erva – Imagem: John MacDougall/AFP
Os avanços não são privilégio da Europa. Leis de descriminalização da maconha foram recentemente adotadas em Israel, África do Sul, Tailândia e Jamaica. Entre as maiores economias, o Canadá foi o primeiro a adotar a legalização completa, em 2018, ao replicar leis adotadas seis anos antes pelos estados de Washington e Colorado, nos Estados Unidos. A iniciativa espalhou-se por outros estados e, embora não exista uma lei federal sobre o tema, 54% da população dos EUA vive atualmente em regiões onde a maconha é legalizada. Na nossa vizinhança, a Argentina descriminalizou a maconha desde 2009 e quatro anos depois o Uruguai foi o primeiro país do mundo a legalizar completamente a produção e venda de maconha, além do “uso recreativo” da planta. A pioneira na América do Sul, entretanto, é a Colômbia, que, após viver o pesadelo do narcoterrorismo nos “anos Pablo Escobar”, desde 1994 vem, entre idas e vindas, adotando leis de descriminalização fundamentais para reduzir os números da violência.
No Brasil, após diversos governos, legislaturas e presidências do STF fugirem do assunto durante anos, o proibicionismo ganhou força, sobretudo após a ascensão política da extrema-direita nas eleições de 2018. “Esse atraso reflete o pânico moral disseminado pelos reacionários que operam muitas vezes com o discurso religioso para demonizar a maconha. Quando esse discurso não é religioso, é policialesco. Às vezes, ambos. Mas, de qualquer modo, é um discurso bastante fechado para o debate e para a influência de informações científicas e de pesquisas sobre o racismo estrutural da lei de drogas”, lamenta o neurocientista e biólogo Sidarta Ribeiro. A dificuldade para se travar o debate científico em esferas como o Congresso acontece, segundo o especialista, porque “existe um posicionamento extremamente lucrativo do ponto de vista político, que joga para a plateia e com os preconceitos, medos e mitos”.
A Alemanha é o mais recente país a legalizar o cultivo e o consumo de maconha
Os prejuízos para o País são evidentes, a começar pela segurança pública, onde a “guerra às drogas” travada nos últimos anos resultou em um espantoso aumento tanto da violência policial contra pretos, pobres e periféricos quanto da população carcerária nacional. Um estudo elaborado pelo economista Daniel Cerqueira e publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada revela que, em média, 34,3% dos homicídios são atribuídos a questões relativas a drogas, número que cresce para 46,6% no Rio de Janeiro. Em todo o Brasil, os negros são objeto de 68% dos processos e prisões relacionados ao porte de drogas. “Temos observado o impacto das políticas de abordagem punitiva e da violência policial na vida de moradores de favelas e outras comunidades periféricas, onde a maioria da população é negra e empobrecida”, diz o tcheco Jan Jarab, representante de Direitos Humanos da ONU para a América do Sul. Desde 2000, acrescenta, a população carcerária brasileira aumentou mais de 200% e continua em crescimento. “No fim de 2023, o Brasil registrou uma população carcerária de 852 mil detentos. Estima-se que até 40% deles podem ter vínculos com drogas.”
Ao encher as unidades prisionais com centenas de milhares de usuários e pequenos traficantes a cada ano, o País reforça o poder das facções que dominam os presídios e cria uma base de recrutamento para o crime, alerta o deputado estadual Carlos Minc, do PSB, pioneiro ao tratar da questão da legalização da maconha desde o seu primeiro mandato parlamentar, logo após o fim da ditadura. “Entopem os presídios, onde pouco se estuda e se trabalha, mas não faltam drogas e celulares. As principais facções comandam o crime a partir dos presídios, como é o caso do PCC e do Comando Vermelho”, observa o parlamentar carioca.
Para Cristiano Maronna, diretor da organização Justa e autor do livro Lei de Drogas Interpretada na Perspectiva da Liberdade (Ed. Contracorrente), a visão do “direito penal máximo” que prega o encarceramento é deletéria porque não reduz a criminalidade: “O Brasil tem a terceira maior população prisional do planeta e os índices de criminalidade são muito elevados em comparação com outros países. Esse modelo político criminal não entrega bons resultados, não entrega paz, não entrega índices de segurança pública que sejam razoáveis. Quanto mais se prende, mais as facções são fortalecidas e esse círculo vicioso é retroalimentado”.
Em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, a Justa lançou um guia com os principais pontos e propostas sobre a legalização da maconha. O documento menciona a pesquisa do neuropsicofarmacologista inglês David John Nutt, a revelar quais as drogas mais prejudiciais ao próprio usuário e aos que estão no seu entorno. “Essa pesquisa considerou drogas lícitas e ilícitas, e o álcool é o campeão. Maconha, ecstasy e LSD estão lá embaixo. Não tem nada mais danoso ao indivíduo e ao seu entorno do que o álcool. No entanto, ele é glorificado em comerciais na tevê, até patrocina eventos. A mensagem é clara: tomem cada vez mais cerveja”, lamenta a socióloga Julita Lemgruber, diretora do CESeC.
Uma das maiores anomalias na Lei de Entorpecentes, dizem os especialistas, é deixar ao critério subjetivo do policial – ou do juiz – a decisão sobre se determinado caso configura tráfico ou porte para uso pessoal. A PEC de Pacheco não mexe com isso, embora o senador afirme o contrário. “A proposta faz a ressalva da impossibilidade da privação da liberdade do porte para uso. Ou seja, o usuário não será jamais penalizado com o encarceramento”, disse o senador logo após a aprovação. Depois, acenou às bancadas da Bala e da Bíblia com a clássica visão retrógrada sobre o uso de drogas. “O motivo da dupla criminalização é que não há tráfico de drogas se não há interessados em adquiri-las. O traficante só aufere renda, e a utiliza para comprar armas e aumentar seu domínio territorial, por meio da venda a um usuário final.”
Também pioneiro no debate, ao organizar nas universidades do Rio tribunais populares sobre a legalização da maconha nos anos 1990, o advogado Rogério Rocco aponta a hipocrisia da visão majoritária do Senado: “A classe média não é conduzida nesse tipo de flagrante como traficante, mas os pobres, os pretos em geral, são”. Tal prática, diz, alimenta os índices de sucesso de prisões e da eliminação de “inimigos” em ações policiais. “Esse inimigo muitas vezes é forjado por uma lei que permite que o policial ou o delegado configure a lógica de um flagrante a seu bel-prazer. As políticas de eliminação de pobres e pretos nos mantêm num círculo vicioso que justifica o aumento de investimentos no combate à violência.”
O mercado de Cannabis legal deve movimentar até 58 bilhões de dólares em 2028
Rocco avalia que o Senado faz o Brasil andar quase 60 anos para trás na política de drogas e reviver a implementação da punição aos usuários decretada em dezembro de 1968, 13 dias após a decretação do AI-5. “Foi uma medida explícita de perseguição à juventude, aos que resistiam aos arbítrios da ditadura, no momento mais grave e grotesco do regime militar. Hoje, significa um retrocesso gravíssimo que se explica pela formação bem-sucedida de uma nova organização da extrema-direita nacional.”
O advogado Ladislau Porto lamenta que o Brasil esteja prestes a repetir um erro histórico ao tratar a questão das drogas sob a ótica da segurança pública, e não da saúde. “Esse atraso é fruto de um racismo estrutural muito forte, porque a erva era consumida pelos negros, em cachimbos de barro. Fomos um dos primeiros países a criminalizar o uso da maconha, na década de 1830, em uma lei racista que previa multa para quem vendesse a erva e prisão de três dias para o escravo que fumasse.” Além do racismo, persiste uma falta de conhecimento muito grande sobre a maconha, lamenta. “Enquanto a ciência avança em demonstrar todas as aplicações médicas da Cannabis, nós retrocedemos ao criminalizar o uso. Para reverter esse quadro é preciso informação, é preciso fomentar o debate.”
O tempo desperdiçado pelo Brasil no uso da Cannabis pela saúde pública é a outra faceta socialmente cruel da posição atrasada do País. Enquanto centenas de milhares de brasileiros de baixa renda que poderiam ter seus problemas de saúde curados ou amenizados com substâncias derivadas da planta – como o Canabidiol (também conhecido como CDB), o composto molecular GHB ou o próprio princípio ativo THC – seguem sem tratamento nem acesso aos produtos, os mais abastados pagam até 500 reais por um único frasco de medicamento nas farmácias. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides, a comercialização da chamada Cannabis medicinal nas farmácias do País mais que dobrou em 2023, ao registrar um crescimento de 127% em relação ao ano anterior. Foram comercializadas 356,6 mil unidades de produtos entre janeiro e dezembro do ano passado, ante 157 mil em 2022, e o faturamento do setor nas farmácias atingiu 150 milhões de reais, um salto de 119% diante dos 65,2 milhões registrados em 2022.
Enquanto o Brasil foca na repressão, a maconha gera negócios lucrativos e farta arrecadação tributária em outros países, a exemplo dos EUA – Imagem: Eden Janine Jim e Mauro Pimentel/AFP
“Muitas famílias de usuários de maconha medicinal enfrentam desafios legais e estigmas sociais relacionados ao uso da planta para esse fim. Retrocessos na legislação como essa PEC podem aumentar o medo de criminalização e também a perseguição por parte das autoridades, colocando em risco a segurança e a estabilidade dessas famílias”, alerta Margarete Brito, fundadora da organização Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal. Dirigente da Associação Brasileira para Cannabis, que também defende o direito ao cultivo individual e coletivo da maconha, Pedro Zarur define como “nefastas” as consequências da política nacional. “Inocentes morrem diariamente em nome de uma guerra contra uma planta.”
Para Sidarta Ribeiro, “a maconha é uma fronteira científica ativa na pesquisa biomédica brasileira”. Ele menciona o professor Elisaldo Carlini que, na Escola Paulista de Medicina da Unifesp, foi o primeiro no mundo a demonstrar em ratos, e depois em seres humanos, que o Canabidiol é um poderoso antiepiléptico. Professor da UFRN, Ribeiro elenca outros trabalhos desenvolvidos na USP e nas universidades federais de São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte. “O Brasil tem tradição, tem cientistas e tem alta qualidade científica nesse assunto, mas tem também todos os entraves que mantêm o País em uma posição de subserviência científica.”
Um dos mais destacados nomes nesse cenário, o psiquiatra Dartiu Xavier Silveira, professor da Unifesp, afirma que, entre os usuários de álcool, a dependência é de 15%, enquanto nos consumidores de maconha é de 9%. “Quando se tem uma postura proibicionista, qualquer uso vai ser visto como patologia. Daí surgem aquelas medidas absurdas de internação compulsória de um usuário. Gastam-se rios de dinheiro do Estado para tratar pessoas que nem sequer têm diagnóstico de dependência, que não precisariam ser tratadas.” Silveira dá como exemplo os discursos das igrejas fundamentalistas. “O sujeito é usuário de álcool, mas, quando se trata de maconha, é dependente. As pessoas têm dificuldade de usar o termo ‘usuário de maconha’, é como se não existisse. Só isso já significa um viés, e as políticas públicas seguem esse caminho, que é o mais ridículo, porque caem nas mãos de pessoas que são reacionárias. Tem muito médico reacionário.”
Fonte: Ipea / Elaboração: Daniel Cerqueira
Neurocientista e doutor em bioquímica, Aderbal Aguiar afirma que a maconha tem eficácia comprovada na terapia de doenças que atingem o cérebro em várias fases da vida, a exemplo das crianças com transtorno de espectro autista, dos adultos com transtornos de humor, ansiedade, depressão e insônia, e dos idosos com doenças neurodegenerativas, como Parkinson, Alzheimer e esclerose múltipla. Sem falar da epilepsia, que atinge todas as idades. “Essa planta funciona muito bem, só que temos de importar, porque aqui é proibido.” Ele lembra que quem consegue comprar o produto importado é a população mais rica. “Já quem depende unicamente do SUS fica prejudicado, porque o acesso é muito mais restrito. Sem falar que, no SUS, o uso desses medicamentos é limitado a alguns casos raros de epilepsia.”
O Brasil ignora, ainda, o imenso potencial da exploração da planta e seus derivados, que têm aplicação muito além da medicina e atende setores como alimentação, vestuário, cosméticos, navegação e construção civil. Somente a fibra de cânhamo tem centenas de aplicações industriais possíveis. “Poderíamos estar produzindo, mas estamos importando”, diz Aguiar.
A PEC da criminalização do uso e porte de drogas terá de passar pela análise e votação na Câmara, mas a expectativa é de aprovação. Isso se o texto não for piorado ainda mais. Um dos nove senadores que votaram contra a proposta, Humberto Costa, do PT, falou com CartaCapital minutos após a votação. “Infelizmente, o Brasil tem falhado bastante na política sobre drogas. Essa questão deveria ser tratada como problema de saúde pública. Temos de garantir àqueles que precisam de tratamento humanizado, tirá-los da esfera criminal e fortalecer a rede de atendimento psicossocial. Estamos também nos privando de pesquisar e adotar produtos derivados da Cannabis, com evidentes prejuízos econômicos e científicos.” A maioria dos senadores preferiu, no entanto, abraçar o populismo penal e o fundamentalismo moral e religioso. Foi a vitória do Brazilstão. •
Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Marcha à ré’
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