Thessa Guimarães

Presidenta do Conselho Regional de Psicologia do DF

Opinião

Se aprovada, PEC das Drogas pode ser base legal para a internação em massa

Sob o argumento de confrontar o STF, o Senado entrega um presente para o lobby das comunidades terapêuticas

Aos olhos de Deus. Sem transparência e sem fiscalização, as comunidades terapêuticas avançam sobre recursos antes destinados ao SUS - Imagem: André Borges/Agência Brasília
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Foi aprovada nesta terça-feira 16 no plenário do Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição 45/2023, que criminaliza o porte de “entorpecentes e similares” em qualquer quantidade. Com relatoria de Efraim Filho (União-PB) e autoria do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a proposta venceu em primeiro turno por 53 votos a nove, e em segundo turno por 52 (veja como votou cada senador). Juristas apontam ilegalidade na pressa de Pacheco em lançar mão de duas votações corridas, para não correr o risco de perder a margem de apenas cinco votos contrários, o que teria barrado a PEC.

A chamada PEC das Drogas é vista como mais um episódio no acirramento da disputa entre Poder Legislativo e Judiciário. Enquanto o Supremo Tribunal Federal caminha para descriminalização do porte de pequenas quantidades de droga até junho, o Senado tenta inserir na Constituição Federal a criminalização do porte de qualquer quantidade.

A PEC das Drogas inclui previsão de crime à Carta Magna, em pleno artigo 5º, dos Direitos e Garantias Fundamentais. Uma adulteração inconstitucional, que diminui direitos e garantias. O projeto ameaça a liberdade de milhões de brasileiros que fazem ou já fizeram uso de drogas ilícitas, e vai na contramão da tendência internacional. Na última sessão de Narcóticos e Crime da União das Nações Unidas, realizada em março deste ano em Viena, uma coligação de mais de 60 países apelou à reforma do sistema internacional de política de drogas. Liderados pela Colômbia na pessoa do presidente Gustavo Petro, os países assinaram uma recomendação contra as consequências desastrosas de políticas punitivistas, incluindo o Brasil.

Em meio à mobilização e pressão populares contra a PEC, o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) negou que o usuário venha a ser penalizado com prisão. Segundo a Agência Senado, Pacheco afirmou que “o usuário não será, jamais, penalizado com o encarceramento, não há essa hipótese. O usuário não pode ser criminalizado por ser dependente químico.” Na mesa direção, o relator do projeto, senador Efraim Filho (União-PB), exigiu observância à distinção entre traficante e usuário “por todas as circunstâncias fáticas do caso concreto, [sendo] aplicáveis ao usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”.

A aparente condescendência dos legisladores com o usuário revela a verdadeira causa movente da PEC das Drogas. Sob o argumento de confrontar o STF, o Senado entrega um presente para o lobby das comunidades terapêuticas, entidades privadas que fazem “acolhimento” de pessoas usuárias de álcool e outras drogas. Na prática, o Congresso dá base constitucional para o recolhimento de portadores de drogas em tais instituições.

No relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas do Ministério Público Federal (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão), em parceria com o Conselho Federal de Psicologia e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, tais instituições são caracterizadas como “locais de asilamento [que] trazem restrições à livre circulação e ao contato com o mundo exterior. Entre elas está a própria instalação em locais de difícil acesso e com a presença de muros, grades e portões – em alguns casos, também de vigilantes. É marca da maioria das instituições visitadas o impedimento à livre saída do estabelecimento e muitas recorrem à punição em caso de tentativa de fuga.”

São abundantes os relatórios de fiscalização de órgãos competentes que apontam violações de direitos em CTs, bem como reportagens em veículos de comunicação nacionais e estaduais. Cárcere privado, sequestro, tortura e trabalho análogo à escravidão são alguns dos exemplos. Segundo Pedro Costa, psicólogo e professor da Universidade de Brasília, as comunidades terapêuticas “são a expressão mais evidente, em termos de instituição, do retorno da lógica asilar-manicomial às políticas de saúde mental”.

O campo das CTs goza de departamento específico dentro do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Sob direção de Sâmio Falcão, o Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas deve iniciar em breve o repasse de verba pública às 585 CTs habilitadas pelo Edital de Credenciamento nº 8/2023. No período de um ano, o governo deve repassar mais de 30 milhões de reais para tais instituições .

Enquanto o Poder Executivo garante o financiamento público a Comunidades Terapêuticas, o Poder Legislativo fornece sua base legal. Através de um conjunto de normativas como propostas de emendas à Constituição e projetos de lei, o Congresso regulamenta seu funcionamento, garante-lhes imunidade tributária, flexibiliza as regras de seu credenciamento, liberam-nas do controle social dos municípios, e, através da PEC 45/2023, inscrevem a “pena alternativa” na Carta Magna. A PEC das Drogas nada mais é do que uma porta aberta na Constituição Federal para internação em massa em CTs.

Com um Congresso ultraconservador e de olho na sucessão de Arthur Lira (PP-AL) na presidência da Câmara, o Governo Federal trata as CTs como um trocado no mercado de negociações da governabilidade. Assim, segue garantindo financiamento público robusto e avanço legislativo a células de mobilização de base eleitoral adversária. A elite escravocrata fundou a República Federativa do Brasil e segue no mando da Nação.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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