CartaCapital

cadastre-se e leia

Lei e vontade

Governo e Judiciário podem avançar na garantia dos direitos das mulheres, diz a antropóloga Débora Diniz

Metade das mulheres que abortaram tomaram a decisão muito jovens, entre 16 e 19 anos – Imagem: iStockphoto
Apoie Siga-nos no

Uma das primeiras ações do Ministério da Saúde foi revogar a portaria que criava obstáculos ao aborto garantido por lei em caso de anencefalia, estupro e risco à saúde da mulher. A medida, embora positiva, não representa necessariamente um avanço, mas recoloca o Brasil em um estágio anterior, ou seja, o de cumprir a legislação. Avanço mesmo seria o Executivo implantar no País políticas públicas que representem a garantia de direitos para as mulheres, independentemente do aval do Legislativo, uma vez que o Congresso Nacional tem forte bancada antigênero. A avaliação é da antropóloga e pesquisadora feminista Débora Diniz. Na entrevista a seguir, ela analisa os cem primeiros dias do governo Lula em relação à pauta das mulheres, diz alimentar esperança no julgamento do STF sobre o aborto e analisa os mais recentes dados da pesquisa nacional a respeito do assunto.

CartaCapital: O Ministério da Saúde revogou as portarias que dificultavam o aborto legal. Qual a importância da medida?
Débora Diniz: A revogação reafirma a necessidade de garantia e da proteção à saúde fundamental das meninas e mulheres nos três excludentes de punição do aborto, em caso de risco de vida, de estupro e de anencefalia. É um sinal claro de que esta é uma necessidade de saúde e tem de ser protegida. A eliminação dos obstáculos, a remoção das decisões anteriores do governo Bolsonaro, é um sinal claro de que os limites de atuação dos ministérios das Mulheres, da Saúde, da Igualdade Racial avançaram em direção à proteção a essa necessidade. Também é um sinal de que os ministérios não vão escapar desse tema nos limites do que a lei permite. Outros limites, no entanto, dizem respeito ao que o Legislativo e o Executivo podem realizar. Tratou-se de um avanço ou de um retorno à situação anterior? É uma pergunta difícil, pois a resposta depende do ponto de perspectiva. Ele é tomado como um avanço por conta dos retrocessos anteriores, e isso faz com que as medidas seguintes possam ser mais cautelosas, mas, na verdade, não é exatamente um avanço. É apenas o respeito a um dispositivo legal e de uma política pública. Então, ele se transforma em avanço num campo político muito reacionário. Mas, na verdade, é um dever de proteção dentro do marco legal existente.

Diniz: Rever as portarias de Bolsonaro foi um primeiro passo – Imagem: Acervo Pessoa

CC: De modo mais amplo, como a senhora avalia as políticas para as mulheres anunciadas pelo governo Lula até o momento?
DD: Uma das prioridades explícitas da ministra Cida (Gonçalves), recentemente ela foi à Universidade de Brasília e eu tive acesso ao que ela disse, é o enfrentamento à violência contra as mulheres e meninas e à população trans no Brasil. São apenas três meses de governo, menos ainda de ministério, mas há uma afirmação explícita de um compromisso. Medidas como a saída do Consenso de Genebra e a revogação das portarias são exemplares da nova orientação. Agora, precisamos analisar o pragmatismo dos programas, precisamos de pesquisas, de atuação concreta em nível comunitário, precisamos sensibilizar o Judiciário e os profissionais de saúde. Foi um período de estrago muito rápido das garantias de proteção às mulheres, às meninas e à população trans no Brasil. Estas pessoas são as que sofrem o efeito do fanatismo antigênero.

CC: Quais iniciativas o governo poderia adotar para garantir os direitos das mulheres sem precisar recorrer ao Congresso?
DD: É possível apostar em avanços de outra forma. Primeiro, o Executivo não orbita em torno do Legislativo, é um poder independente. O processo legislativo demanda tempo. É importante dar ao Executivo a magnitude do seu poder e, portanto, da sua responsabilidade na proteção de direitos. Na Pesquisa Nacional do Aborto, mostramos que uma em cada duas mulheres fez seu primeiro aborto na adolescência. Há uma interpolação explícita. Como o conjunto de ministérios pode alcançar a população adolescente, especialmente a mais vulnerável, ou seja, pobre e negra? Com políticas integradas de saúde na adolescência, educação sexual nas escolas? Duas em cada três mulheres, mostra o levantamento, não planejaram a gravidez. Não sabemos se essas mulheres sofrem ou sofreram violência. Que respostas as políticas públicas vão dar? Poderia fazer uma lista de ao menos duas páginas de medidas que não dependem do Congresso. Atrelamos os dois poderes, governo e Congresso, mas parece uma maneira errada de olhar o problema e talvez, inclusive, de apequenar o Executivo. Talvez o governo dependa do Legislativo para a aprovação de outras pautas, como o arcabouço fiscal, e se veja impelido a não avançar em outros temas. Mas não é assim que deveria ser a política sobre a definição do que é justo. E não venham chamar de idealismo. A necessidade das mulheres passa pela distribuição de renda, pela discussão de gastos e passa por saúde reprodutiva. Você fez a pergunta sobre o Congresso e eu dei a resposta sobre o Executivo, mas podemos falar sobre o Judiciário. Na Justiça tramitam algumas ações, mas, em particular, uma que pede a descriminalização do aborto nas 12 primeiras semanas e que pode avançar independentemente do Legislativo, com igual legitimidade.

“O aborto continua a ser um evento comum na vida da mulher brasileira”

CC: Como a senhora avalia o número de mulheres nos ministérios no governo Lula?
DD: Temos uma representatividade no governo Lula como nunca tivemos na política, inclusive com composições muito diversas de mulheres abaixo do nível ministerial. A minha principal preocupação neste momento, se me permite enquadrar a pergunta, é com a nomeação de ministros do Supremo. São duas vagas abertas e acho que a pergunta não é só sobre equidade. Seria um insulto a não nomeação de mulheres. Trata-se de uma reparação histórica sobre a não representatividade, ao apagamento das mulheres na Corte, em particular de mulheres negras.

CC: Existe uma grande expectativa de que a ministra Rosa Weber, antes de sua aposentadoria, em outubro, paute o julgamento da ação que pode levar à descriminalização do aborto com consentimento da mulher nos primeiros três meses de gestação. A senhora acha possível o STF dar, de fato, esse passo na atual conjuntura?
DD: Acredito que sim. Com a reforma do regimento do Supremo, o tempo de julgamento ficou mais célere. A ação sobre a descriminalização do aborto tramita há quatro anos. Seria muito importante o País tomar uma decisão favorável, em consonância com o que se passa na América Latina. México e Colômbia decidiram o tema nas Cortes constitucionais. Será uma surpresa se assim não for no Brasil. O STF saiu fortalecido da pandemia de Covid-19, por ter sido uma Corte que tomou para si uma questão constitucional, o direito à saúde. O aborto perpassa uma questão constitucional, que é o não cabimento do Código Penal à luz da Constituição. Ou seja, o Código Penal, de 1940, não espelha a ideia do direito à saúde como a Constituição prevê e como a Corte reafirmou durante a crise sanitária.

A antropóloga celebra o aumento do número de mulheres no governo e torce para Rosa Weber levar adiante a ação que pede a descriminalização do aborto – Imagem: Ricardo Stuckert/PR e Nelson Jr./STF

CC: De acordo com recente pesquisa do Datafolha, somente 18% dos brasileiros são favoráveis ao aborto.
DD: Este é um assunto de crença privada, de preferências individuais, não é um tema para se medir em pesquisas de opinião. Fazem uma pergunta sobre gostos e preferências em relação ao que deve ser sobre práticas, eventos. Por isso a nossa pesquisa nacional pergunta se a mulher já fez aborto. Uma em cada sete já fez. Então, todas as vezes que levamos temas morais para pesquisas de opinião, o que fazemos é movimentar o fanatismo. “Você é contra ou a favor de casamento inter-racial?” Isso tem nome, é racismo. Isso é uma pergunta de moral. Uma pergunta que fala sobre aborto tem um nome, misoginia. Então fazemos perguntas que movimentam a misoginia da moral patriarcal. Por isso ela é uma má ciência e deve receber o seu nome, o de perguntas misóginas.

CC: A Pesquisa Nacional sobre Aborto acaba de ser publicada. Em linhas gerais, o que o levantamento identificou?
DD: A PNA de 2021 nos mostra que o aborto continua a ser um evento comum ­na vida­ da mulher brasileira. Uma em cada sete mulheres aos 40 anos fez ao menos um aborto. Também identificamos, pela primeira vez, que uma em cada duas fez o primeiro aborto quando era muito jovem, entre 16 e 19 anos. Há uma concentração do aborto entre as mulheres negras do Norte e do Nordeste, mas isso não significa que não esteja em todas as regiões, classes sociais, raças e faixas educacionais. •

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Lei e vontade’

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo