CartaCapital
Golpe no golpismo
Acaba a histórica Condescendência com Bolsonaro
O despacho de prisão de um ex-presidente da República, de quatro oficiais generais e de um almirante ex-comandante da Marinha, entre outros altos integrantes do governo passado, é o maior golpe que a tradição militar golpista recebeu até hoje. São eles: Jair Messias Bolsonaro, Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Almir Garnier. Somam-se Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, e Alexandre Ramagem, ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (foragido). A condenação desses personagens é inédita e histórica em termos de punição de golpistas. Expressa um duro golpe na doutrina golpista dos militares que floresceu com o nascimento da República, atingiu o apogeu com o golpe de 1964 e fez-se ouvir num eco pálido e moribundo no 8 de Janeiro de 2023.
As condenações e as prisões devem servir de exemplo, fechando as portas para aqueles que ainda alimentam essas pretensões antidemocráticas, que os faça desistir pelo temor à lei, à Constituição, à Justiça e aos tribunais. Para que sirvam de exemplo é necessário, no entanto, que os oficiais no comando das Forças Armadas, nesse momento histórico, acelerem mudanças de doutrinas, de currículos formativos, de cultura, de procedimentos. O governo precisa contribuir com esse processo sem os tradicionais melindres.
É certo que a maioria esmagadora dos militares não aderiu à trama golpista. Mas, nas Forças Armadas, ainda persistem resíduos de ideologia, de cultura, de elementos simbólicos, assim como persistem brechas legais dúbias que estimulam os ambiciosos ou temerários com sonhos sombrios de regimes ditatoriais. Tudo isso precisa ser removido, a legislação aperfeiçoada e uma nova cultura deve estimular a formação dos militares. O eixo orientador consiste em afirmar algumas teses: a supremacia do poder civil legítimo, a subordinação dos militares ao poder civil, a despolitização e a desideologização dos militares e uma formação estritamente profissional. Os militares não podem ser nem de direita nem de esquerda. Seu único credo é servir ao País nos termos da Constituição e do Estado Democrático de Direito.
A prisão de Bolsonaro, em particular, representa o fim da Condescendência. A senhora Condescendência deve ser mãe, madrasta ou madrinha de Bolsonaro. Preso e expulso do Exército, teve a Condescendência do Superior Tribunal Militar, que anulou a expulsão. Como político, teve longa carreira de homofobia, machismo, misoginia, de defesa de tortura e de torturados, de incitação à violência e fuzilamentos em massa de adversários, de massacre de índios, de deboche e desprezo aos mortos na pandemia, de ataque à legitimidade das eleições e de estímulo ao golpe. Ele construiu sua carreira contra a democracia, contra os direitos e contra a dignidade humana. O Supremo Tribunal Federal e o ministro Alexandre de Moraes decidiram afastar a senhora Condescendência de seu protegido. Bolsonaro foi alcançado pela lei fria e terá de pagar.
A prisão do ex-presidente e dos altos oficiais produzirá efeitos políticos na conjuntura e no processo eleitoral de 2026. Bolsonaro perde capacidade de articulação, seja por estar preso, seja pela trapalhada tresloucada da tentativa de rompimento da tornozeleira eletrônica ou, ainda, pela insidiosa ação de Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos para prejudicar o Brasil.
É preciso uma nova cultura na formação militar
Com esse cenário de desgastes, o bolsonarismo, no sentido amplo do termo, caminha para uma dispersão. Os mais devotos e engajados tendem a uma radicalização. Os mais moderados, a um afastamento e a uma busca de outra liderança para concorrer à Presidência da República.
A família encontra-se numa encruzilhada: concorrer com um integrante do clã ou aceitar um lugar de vice de um candidato aceitável por Bolsonaro. No primeiro caso, manterá sua autonomia e buscará agregar força de negociação para um segundo turno, mesmo que o candidato venha a obter de 15% a 20%. No segundo caso, se tornará uma força secundária do jogo político e assumirá uma posição subalterna.
Na família, restaram apenas dois nomes: o do senador Flávio e o de Michelle. Ela é mais competitiva, seja por ser carismática ou por combinar uma retórica político-religiosa bastante atrativa para segmentos eleitorais significativos. Mas enfrenta o veto dos filhos do ex-presidente. A vaga sobraria para Flávio. No caso de composição, tanto Michelle quanto o senador podem ocupar a vaga de vice.
As pré-candidaturas presidenciais postas neste campo são as de Ratinho Júnior, de Tarcísio de Freitas, de Ronaldo Caiado e de Romeu Zema. Tarcísio deverá candidatar-se à reeleição, pois abandonaria o quase certo pelo altamente duvidoso. Zema deverá ser candidato para catapultar o Partido Novo, que tende a sofrer o impacto da cláusula de barreira. Caiado enfrenta problemas no partido e na saúde. Tudo converge para que Ratinho Júnior seja o nome.
O projeto de anistia parece estar enterrado. A ideia de fazer mobilizações e vigílias em favor de Bolsonaro precisa ser testada. Mas aqui também as trapalhadas desmoralizantes tendem a provocar desengajamento. Podem ter alguma robustez no início para minguar depois.
O governo e Lula não podem fiar-se nas vicissitudes da família Bolsonaro e da extrema-direita. O presidente não obterá ganhos automáticos dessa situação. Precisa ir a campo e construir seus ganhos. O Brasil continuará polarizado. No segundo turno, o antilulismo se unirá. O momento é favorável, mas é preciso ser trabalhado e potencializado pela ação política. •
*Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.
Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Golpe no golpismo’
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