CartaCapital

O ­Brasil ­reencontra o fantasma do racionamento de energia

Inépcia, ausência de planejamento, investimento insuficiente e uma seca brutal aumentam os riscos de um cenário semelhante ao de 2001

(FOTO: Rudja Santos/Amazônia Real)
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Era só o que faltava. Com a pior gestão da pandemia no mundo, a fome disseminada­ e o desemprego em alta, o ­Brasil ­reencontra também o fantasma do racionamento de energia, como em 2001. Uma crise energética que provocaria, no mínimo, apagões nos meses de setembro e outubro e turva as perspectivas de recuperação da economia, passou a frequentar a conversa de investidores, acadêmicos e especialistas e transbordar para as análises da mídia. O receio surge da combinação clássica e trágica dos fatores que levaram ao caos de duas décadas atrás: ­ausência crônica de planejamento, investimentos insuficientes e nem sempre adequados e opção sistemática pelo atendimento aos interesses de grupos poderosos do setor elétrico em prejuízo da população. Tais problemas foram ampliados no atual governo e explodiram com a pior seca do País em 91 anos. Além disso, corre-se o risco de perenizar a vulnerabilidade com a iminente privatização da Eletrobras,­ a maior empresa de energia elétrica da América Latina, a ser oferecida, ainda por cima, a preço irrisório, se o Senado não barrar a Medida Provisória­ aprovada pela Câmara dos Deputados.

O risco de apagões leva o País a reviver o trauma da falta de energia em 2001, resultado de baixos investimentos no setor, privatizações e outros erros do governo Fernando Henrique Cardoso e uma das causas das sucessivas derrotas eleitorais dos tucanos desde então. Nesse contexto, ocorreu uma seca severa e o resultado foi o maior racionamento da história nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste e parte da Região Norte. Para evitar o colapso, FHC implantou a redução compulsória de 20% do consumo de eletricidade e punições para quem ultrapassasse o limite.

A crise energética atual, dizem os especialistas, seria explosiva não fosse o fato de a pandemia e a lenta vacinação no ­País terem derrubado a economia e o consumo de eletricidade, mas uma retomada provocada pela recuperação dos EUA, ­China e países europeus que controlaram a ­Covid-19 pode aumentar a demanda de energia e a crise do setor. Na ­segunda-feira­ 31, os participantes da pesquisa Focus do Banco Central aumentaram a projeção de crescimento do PIB neste ano, de 3,14% há um mês para 3,96%. O crescimento de 1,2% do PIB no primeiro trimestre, diante de igual período do ano passado, divulgado pelo IBGE na terça-feira 1º, acima das projeções do chamado mercado, é uma confirmação do efeito de arrasto, pois o maior dinamismo concentrou-se em agropecuária e indústria extrativa, um desempenho que “tem mais a ver com o restante do mundo do que propriamente com a evolução da economia brasileira”, segundo destacou o Instituto de ­Estudos para o Desenvolvimento Industrial.

Os reservatórios estão em baixa. (FOTO: Pedro Ventura/Agência Brasília.)

A crise energética galopa. Um problema na linha de transmissão de energia elétrica do Pará para o restante do País desligou sete turbinas da Usina de Belo Monte e deixou diversos estados sem energia por 20 minutos na sexta-feira 28. No mesmo dia, o Sistema Nacional de Meteorologia previu situação de emergência hídrica, entre junho e setembro, em 248 municípios em São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul, devido à seca extrema. Todas as usinas térmicas, mais ­caras e poluentes, estão acionadas, a conta de luz subiu em maio para o nível de bandeira vermelha 1, e em junho passará para bandeira vermelha 2, ainda mais alto. A possibilidade de melhora significativa do quadro é nula, pois a Região ­Centro-Sul­ ­está prestes a ingressar no período de ­falta de chuvas.

“Estamos passando por um período de hidrologia dos piores da história, desde setembro de 2020. É claro que isso é problema num sistema que tem a base hídrica­ grande, mas há uma vantagem em relação a 2001, que é a diversificação da matriz energética. Hoje há muito mais eólicas no Nordeste, a solar aumentou, tem a biomassa, a maior parte das usinas de cana-de-açúcar usa bagaço para produzir energia e exporta o excedente para a rede e termelétricas foram construídas”, analisa Maurício Tolmasquim, professor­ titular da Coppe, instituição ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro, e ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética.

Como em 2001, não adianta culpar apenas a falta de chuvas

Isso dá mais segurança, diz, mas não é uma situação tranquila, dado que os reservatórios estão muito baixos e o período seco apenas começou nas regiões Sudeste e Centro-Oeste e irá até novembro. Racionar energia, talvez se consiga evitar, o risco maior é ter alguns problemas de atender a ponta do sistema entre 18 e 19 horas, período em que todos ligam os chuveiros e outros equipamentos ao mesmo tempo e o consumo aumenta muito. Como o nível dos reservatórios fica mais baixo, a capacidade de produzir energia nesse período diminui.

“Corremos, sim, o risco de ter algum problema, apagões, nesse horário de ponta”, alerta Tolmasquim

Uma questão que requer atenção, sublinha o especialista, é que o País não usa neste momento todas as termelétricas. Um grupo delas, que corresponde a entre 2 mil e 4,5 mil megawatts, de um total de 200 mil megawatts, está indisponível por problemas de manutenção, quebra e despacho, entre outros. “É uma parcela razoável fora de operação neste momento em que o País está até importando energia do Uruguai. Cabe às instituições do setor mapear esse problema e fiscalizar”, sugere Tolmasquim, que critica ainda a entrada em operação de todas as usinas disponíveis apenas em maio, quando isso deveria ter sido feito em janeiro.

A energia eólica ganhou espaço na matriz nos últimos 20 anos. Sauer e Tolmasquim alertam para os riscos de apagões nos horários de pico e de alta nos preços. (FOTO: Waldemir Barreto/Ag.Senado, Sérgio Lima/Folhapress e Ministério do Planejamento)

Um crescimento eventual da demanda puxado pela retomada nas maiores economias e o aumento da vacinação, “sem dúvida estressa o sistema de energia”. Dada a diversificação mencionada, afirma, é possível evitar o racionamento, mas haverá impacto muito forte sobre os preços. “É evidente que o governo está se negando a dar orientação para promover o uso mais racional da energia, fazer a população economizar, não querem sinalizar, porque isso é um baque. Caso a economia retome o crescimento, teremos problemas, mas, se o nível de atividade continuar extremamente baixo por causa da crise sanitária, é o que eu tenho dito, a desgraça brasileira é tão grande que nós só nos livramos do racionamento da crise energética por causa da crise sanitária”, dispara Ildo Luís Sauer, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo. “Há recursos disponíveis para evitar que se chegue ao racionamento, a exemplo da mobilização, por meio de incentivos, da capacidade instalada contratada e não contratada ainda, dos geradores de condomínios, edifícios, hospitais, mas isso não acontecerá se o governo continuar com a cabeça enterrada na areia porque não quer assumir a gravidade da situação.”

A crise do setor elétrico não deveria nos surpreender, sublinha Sauer, pois ela é muito menos resultado do comportamento do clima do que da política. Desde que se começou a reformar o setor elétrico nos anos 1990, sob as asas do governo FHC, prometeram aos consumidores tarifas menores, melhor qualidade da energia e garantia do suprimento. Nenhuma das três promessas foi cumprida. A tarifa­ brasileira é hoje uma das mais caras do mundo e desde então aumentou mais de 100% acima da inflação. O racionamento de 2001, os vários apagões nacionais e, recentemente, a crise do Amapá ilustram o cenário. “Estamos nessa situação”, prossegue Sauer, “porque, em resposta ao apagão de 2001, o novo governo, que foi eleito em parte por causa da crise energética, que mostrou claramente que as políticas econômicas ultraliberais não funcionaram, prometeu reformar e não reformou o suficiente, fez pequenos ajustes, mas manteve a lógica de que os grandes consumidores, isto é, cerca de mil empresas que consomem em torno de 25% da eletricidade brasileira, pagassem tarifas abaixo do custo de produção mediante tramoias e arranjos regulatórios.”

A redução de 20% no consumo e punições que previam corte do fornecimento em 2001 aceleraram o fim do período FHC. (FOTO: MAURICIO LIMA / AFP)

Durante uma audiência pública no ­Senado na segunda-feira 31, Ikaro Chaves, presidente da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras, disse que o racionamento é possibilidade cada vez maior, mas uma elevação substancial da tarifa é certeza devido ao acionamento das térmicas. Para piorar, acrescenta Chaves, o projeto de privatização da empresa envolve um processo de descotização que consiste em retirar 7.451 megawatts de garantia física de usinas cotizadas, que vendem energia, em média, a 61 reais o megawatt-hora, e repassar ao mercado livre, onde as distribuidoras vão ter de recontratar essa energia a preço três vezes maior. “Nós prevemos em estudos da associação dos engenheiros que o preço-base da energia vai variar de 294 a 300 reais com a descotização, o que resultará em aumento na conta de luz de ao menos 14%. São quase 20 bilhões de reais por ano, um total de 600 bilhões de reais que serão retirados dos bolsos dos consumidores residenciais, das pequenas indústrias, dos agricultores em 30 anos de concessão”, calcula o sindicalista.
Chaves continua: “Um total de 25,5 bilhões de reais da receita apurada com a desestatização vai para a Conta de Desenvolvimento Energético. O governo diz que isso vai reduzir a conta de luz, o que é fake news. A CDE representa menos de 10% da conta residencial média brasileira e essa redução mal paga o orçamento deste ano, que é de 24 bilhões, além de que ela vai ser feita ao longo de 30 anos. A redução da conta de luz por conta da privatização da Eletrobras será, portanto, de 0,35%, ao passo que haverá 14% de aumento. Ocorrerá, portanto, aumento líquido superior a 13%”.

A privatização da Eletrobras aumentaria a conta de luz em 14% só neste ano

Há outros riscos graves, destacou a diretora do Instituto Ilumina, Clarice­ ­Ferraz, na mesma audiência pública. “O risco de racionamento bate à nossa porta e o Brasil está privatizando a nossa maior empresa de eletricidade, a que é a mais estruturante de toda a nossa organização setorial, antes que sejam definidas novas regras, discutidas no Projeto de Lei 414, agora na Câmara dos Deputados. As reformas organizacionais e regulatórias que estão em curso alteram fundamentalmente o valor dos ativos existentes e o precedente de 1995 mostra que, quando se faz o ajuste do marco regulatório após uma privatização e uma mudança de ativos, o efeito é a falta de investimento.” Não faz sentido, diz a especialista, “uma proposta de expansão do mercado livre como se a liberdade de escolha fosse resolver um problema de oferta”.

Em paralelo, vive-se no setor elétrico um período de transformações tecnológicas, mudança de paradigma, com grande expansão de fontes renováveis, cuja operação altera de forma profunda o funcionamento do sistema. “Há uma série de crises que se somam, mas na origem o ponto em comum é realmente a crise ecológica, a profunda crise econômica e a rediscussão do Estado como o único capaz de provocar a retomada das atividades econômicas, de agir contraciclicamente”, ressalta Ferraz.

O que ajuda mesmo, indicam os estudos mais avançados no mundo, é ter transmissão e reservatórios que funcionem como bateria móvel, porque a eletricidade pode caminhar ao longo das linhas de transmissão. Ter reserva operacional e reserva de regularização é magnífico, de valor inestimável neste momento de transformação tecnológica, ressalta a diretora do Ilumina. “O que está em jogo hoje neste projeto de privatização é a escolha do futuro do nosso País, se vamos adotar uma transação energética, encarar as mudanças climáticas sem nos preocupar com tarifa a preços módicos e uma indústria competitiva geradora de empregos. O projeto do governo implica ignorar a nossa base hidráulica, usar os reservatórios como fontes de eletricidade como quaisquer outras, complementar isso com fóssil e carbonizar a ­matriz, ­aumentar a insegurança energética e a dependência internacional”, dispara.

Poluidoras, caras, as térmicas resolvem situações emergenciais. (FOTO: GNPW Group)

“O que se vê é um governo que abandonou qualquer planejamento. Não existe proposta para o setor energético, a não ser ficar ao sabor do mercado e nós vamos viver situação similar àquela da época de Fernando Henrique Cardoso”, alerta o ­deputado Carlos Zarattini. “Todo esse processo da privatização da Eletrobras, a reforma administrativa, o desmonte das empresas, tudo isso é feito apenas com o objetivo de promover negócios. Paulo Guedes não é um ministro que tem visão econômica do País, de investimentos públicos, de desenvolver setores fundamentais para a economia. Ele só quer promover negócios, e de curto prazo. O planejamento deles é este: como gerar novos negócios, não é pensar no País, no desenvolvimento.” Adivinhe quem pagará a conta dos negócios do ministro. Recomenda-se, como em 2001, manter em casa um bom estoque de velas, lanternas, lampiões…

Preparem as velas, parte I

A desesperadora opção de repetir os mesmos erros

Por Sergio Lirio

Há exatos 20 anos escrevi a reportagem da capa ao lado. Eu era um jovem e esforçado repórter recém-chegado a CartaCapital, interessado pelo assunto por influência de um colega que partiu muito cedo, László Varga, durante a minha segunda e meteórica, mas não fulgurante passagem pela Folha de S.Paulo. A esta altura, em que me confundo com as mesas, cadeiras e demais utensílios desta revista (teria me transformado em um copy­ desk?), até hoje sem entender a paciência de Mino Carta em me aturar, constato, com muito desânimo e certo desespero, a recorrência da nossa tragédia varonil. Como a cigarra da fábula, o Brasil entrega à natureza, demasiadamente generosa, o próprio destino – para depois reclamar de sua sina.

Quando esta capa chegou às bancas, CartaCapital foi acusada de sensacionalismo, de torcer contra o País, de pregar a catástrofe. Inebriados pela opção neoliberal do governo Fernando Henrique Cardoso e pelas expectativas de lucros exorbitantes com a desregulamentação do setor energético, o mercado financeiro, empresários e a quase totalidade dos meios de comunicação negaram a realidade até o limite da irresponsabilidade, no esforço de manter o fiapo de popularidade de FHC e entronar seu sucessor (o escolhido seria José Serra) no Palácio do Planalto, a fim de evitar a todo custo o “demônio” Lula. Quando os fatos se impuseram, culparam São Pedro, a falta de chuvas, o capricho do tempo – deu errado, a maioria sabia quem eram os responsáveis. O racionamento de energia, inevitável, conforme apontava a reportagem, deixou o País no escuro e salgou a conta de luz. A punição ao PSDB viria das urnas em 2002. Desde então, ao contrário dos vaticínios do tesoureiro Sérgio Motta, o partido não permaneceu 20 anos no poder em Brasília, está há duas décadas longe dele – e, tudo indica, continuará por muito mais tempo do lado de fora da festa. A abstinência alimentou o ressentimento e os tucanos, representados por Aécio Neves, decidiram liderar a aventura do golpe, antes de serem destronados pelos vândalos, que lançou o País no abismo da loucura e do atraso.

O PT teve a chance de recolocar o setor elétrico nos trilhos. Em 2003, a maioria da população apoiava uma intervenção estatal e até a reestatização de concessionárias privatizadas. Sob a orientação do ministro da Fazenda Antonio Palocci, os petistas preferiram, no entanto, cumprir os compromissos da “Carta aos Brasileiros”. Dois nomes centrais na elaboração do capítulo energético do programa de governo que levou Lula à vitória, Luiz ­Pinguelli Rosa e Ildo Sauer, acabaram afastados da linha de frente, para não melindrar os investidores, e tiveram de se contentar com prêmios de consolação, cargos secundários e distantes do centro das decisões. A opção por remendar o soneto e recuperar algum grau de previsibilidade na administração dos recursos adiou, sem eliminar, a ameaça de nova crise energética. Mas o espírito da cigarra nunca resiste ao apelo da vida fácil e das negociatas. Bastaram quatro anos da “pinguela” para o futuro de Michel Temer, de desmonte das estruturas de planejamento, do Teto de Gastos e da incompetência inigualável e criminosa do governo Bolsonaro para o Brasil voltar a depender dos caprichos da natureza. Guiado por um peculiar Messias, resta ao País orar por chuvas abundantes e pela recuperação moderada da economia. Quanto mais rápido o PIB crescer, maior a ameaça de apagão. O governo dirá que a culpa é da seca, mas, como em 2001, São Pedro é o único inocente.

Publicado na edição n° 1160 de CartaCapital, em 3 de maio de 2021.

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