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De volta ao jogo

Após quatro anos de negacionismo ambiental, o Brasil volta a assumir protagonismo no debate do clima com o retorno de Lula ao poder

O capitão enxovalhou a imagem do Brasil nos fóruns ambientais - Imagem: Federico Gambarini/DPA/AFP e Guarda Costeira das Filipinas/AFP
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O atual governo brasileiro já não era muito bem-vindo às discussões ambientais, mesmo quando gozava de plenos poderes. Agora que foi derrotado nas urnas vai ter ainda menos espaço. É um ex-governo em atividade e todo mundo vai querer saber mesmo é o que Lula vai fazer, embora ele não represente oficialmente o País.” As palavras de ­Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, revelam a expectativa que tomou conta dos participantes da próxima Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas desde a confirmação da vitória do líder petista.

Aliviados com a ausência do agora recluso Jair Bolsonaro, os organizadores da COP-27, que acontecerá de 6 a 18 de novembro na cidade egípcia de Sharm-el-Sheikh, formalizaram o convite ao presidente eleito. Segundo pessoas próximas, Lula ainda não bateu o martelo, mas sua ida ao Egito, se confirmada, inaugurará em grande estilo a reconciliação do Brasil com o mundo, justamente em uma seara onde Bolsonaro tirou o País do jogo global e o relegou à condição de pária e alvo do escárnio internacional.

Bolsonaro sempre fez pouco caso das discussões climáticas e chegou a impedir que a COP-25 fosse realizada no Brasil. Quando decidiu comparecer pela primeira vez à Conferência, no ano passado, o ex-capitão foi alvo de denúncias sobre o aumento do desmatamento e a invasão de Terras Indígenas por garimpeiros, entre outros crimes, e apresentou um fantasioso plano nacional de redução das emissões de gases de efeito estufa (NDC, na sigla em inglês), recebido com incredulidade pelos líderes globais e qualificado como “pedalada ambiental” pelas entidades do movimento socioambiental. O desprezo mútuo agora chegou ao fim. Além do convite da ONU para a ­COP-27, Lula foi chamado também pelo presidente do Egito, Abdel Fatah al-Sissi, para ir ao país africano. Um dos responsáveis pela elaboração do programa de governo do petista para a área ambiental, o deputado federal reeleito Nilto Tatto aposta na presença de Lula: “Há uma expectativa muito grande na sociedade civil e nos meios científico e acadêmico do mundo todo quanto à ida de Lula à ­COP-27. Ele provavelmente irá por volta do dia 14, na segunda semana da Conferência. Não está definida uma data exata”.

O líder petista foi convidado pela ONU e pelo Egito para a COP-27. O pária Bolsonaro já é tratado como carta fora do baralho

Ainda não estão confirmados os eventos ou encontros bilaterais dos quais ­Lula participará, mas um deles deve acontecer a convite do governador do Amapá, ­Waldez Goés, presidente do Consórcio de Governadores da Amazônia Legal. É a primeira vez que o Consórcio, a reunir nove governadores da região, montará um estande separado do espaço ocupado pelo governo federal, decisão que revela o desprestígio do governo Bolsonaro. Com Lula, o jogo é outro: “O Brasil é muito importante nos debates sobre mudanças climáticas, biodiversidade, florestas e Amazônia. Vai reassumir o papel de protagonista que já teve, em especial no período de Lula. O mundo espera com ansiedade que o Brasil retome essa agenda e seu protagonismo internacional”, diz Tatto.

No Egito, Lula poderá encontrar-se pela primeira vez depois de eleito com líderes como Joe Biden, dos EUA, e ­Emmanuel Macron, da França, que confirmaram presença para os dias finais da COP-27. O tema ambiental ocupou boa parte da conversa ao telefone na qual Macron parabenizou Lula pela vitória. Segundo o ex-chanceler Celso Amorim, isso se repetiu nas conversas com os primeiros-ministros Olaf Scholz, da Alemanha, e Pedro Sánchez, da Espanha: “O Brasil voltará a ser protagonista. O País tem esse peso e o Lula mais ainda”. Tanta ansiedade é de fácil explicação, uma vez que o Brasil tem as maiores florestas e biodiversidade do planeta e durante os governos de Lula e ­Dilma Rousseff conseguiu reduzir o desmatamento em 80%, ao passo que Bolsonaro o fez crescer acima de 70%.

A ex-ministra Marina Silva é aguardada na comitiva de Lula em Sharm-el-Sheikh – Imagem: Ricardo Stuckert

Não se sabe ao certo como o atual governo se fará representar na COP para além dos habituais quadros do Itamaraty. O Ministério do Meio Ambiente planejava participar de um estande em parceria com as confederações nacionais da Indústria e da Agricultura, mas, procurada por CartaCapital, sua assessoria de Comunicação não confirmou a agenda nem a presença do ministro Joaquim Leite. Pudera, não será nada fácil defender a narrativa fake do bolsonarismo após a divulgação do relatório do Observatório do Clima, a cinco dias da COP, a revelar que as emissões de gases de efeito estufa tiveram aumento de 12,2% no Brasil no ano passado, a maior alta em 19 anos. De acordo com o estudo, as emissões foram puxadas pelo desmatamento, secundado pela pecuária e a queima de combustíveis fósseis. Significaram o lançamento de 2,4 bilhões de toneladas de CO² na atmosfera somente em 2021.

A vilania ambiental do governo provocou outro fato inédito, pois é a primeira vez que as emissões brasileiras aumentam pelo quarto ano consecutivo, tendência coincidente com a chegada de Bolsonaro ao poder. “É uma coisa assustadora. O Brasil é, hoje, o quinto ­país que mais emite gases de efeito estufa”, alerta Pedro Graça Aranha, dirigente da Coalizão pelo Clima, lembrando que o ex-capitão levou o País ao top five do aquecimento global, atrás apenas de China, EUA, Índia e Rússia: “É fundamental ter orçamento para mitigação e adaptação ao aquecimento do planeta. O Estado tem de se preparar e esse é o grande papel que Lula vai cumprir”, diz o ambientalista.

Um dos estudos que serão apresentados em Sharm-el-Sheikh foi realizado pelo Inpe ao longo de dez anos e revela que a emissão de CO² na atmosfera da Amazônia mais que dobrou nos dois primeiros anos de governo Bolsonaro. A média brasileira anual de emissão, que entre 2010 e 2018 foi de 250 milhões de toneladas de carbono, subiu para 440 milhões em 2019 e 520 milhões em 2020. O ano passado não foi alcançado pelo estudo, mas tudo indica a manutenção da tendência.

A cinco dias da COP, relatório revela que as emissões de gases de efeito estufa tiveram aumento de 12,2% no Brasil em 2021, a maior alta em 19 anos

O resultado é a prova cabal de que o inventário de emissões nacionais enviado à ONU não se sustenta em pé e deve aumentar as críticas ao governo brasileiro, isolado das discussões globais desde a “pedalada” que alterou de 2,1 bilhões de toneladas de CO² para 2,8 bilhões as emissões estimadas para o Brasil em 2005, ano-base para os cálculos de redução. Com a “esperteza”, o governo do ex-capitão concedeu a si mesmo uma licença para desmatar e poluir, mas só fez aumentar o desprezo internacional.

Na COP-27, o objetivo do movimento socioambiental é estreitar o diálogo com Lula e os representantes do governo eleito. Astrini afirma que há um canal de comunicação aberto desde a campanha: “Receberam-nos diversas vezes e entregamos as propostas de reversão desse legado terrível que Bolsonaro deixou para o meio ambiente. São 64 propostas para os primeiros cem dias de governo e mais 72 propostas para o restante do ano”. O dirigente do OC conta que conversa constantemente com alguns prováveis integrantes do futuro governo. “Já nos colocamos à disposição para ajudar também no período de transição com informações técnicas. É um diálogo muito bom.”

Dirigente do Fórum Brasileiro de ­ONGs pelo Meio Ambiente (FBOMS) e representante da Fundação Esquel na ­COP-27, ­Rubens Born coordenará as atividades de uma equipe que inclui lideranças da Comissão Nacional de Comunidades Rurais Quilombolas, do Grupo de Trabalho Amazônico e da Frente por Uma Nova Política Energética, entre outras entidades. “Estamos levando pessoas das comunidades e segmentos mais vulneráveis às políticas vigentes no governo Bolsonaro e aos descasos como o racismo ambiental”, diz. “Queremos usar este momento não só para denunciar, mas para mostrar nosso engajamento com a reversão deste quadro e destas políticas.”

Em telefonema para Lula, o francês Macron disse estar ansioso para retomar as negociações climáticas – Imagem: Betine Lesmoux/Presidência da França

A expectativa dos ambientalistas, acrescenta Born, é de que o governo eleito consiga implementar nacionalmente medidas de proteção ao meio ambiente, renovar seus compromissos em relação ao clima e reverter gradativamente as taxas de desmatamento. Ele anuncia em primeira mão: “Propomos ao presidente Lula que o Brasil se ofereça para mais uma vez ser anfitrião de uma COP. Em 2025, será a vez de América Latina ou Caribe sediarem a COP do clima e, até lá, esperamos apresentar três anos de redução do desmatamento, restauração florestal, avanços na transição energética e respeito e fiscalização às Unidades de Conservação e aos territórios indígenas”.

Born também conversa com redatores do programa de governo de Lula. “Troquei mensagens com ex-ministras e ex-ministros e estamos conversando com alguns parlamentares”, diz. O momento de um diálogo mais intenso entre o presidente eleito e o movimento socioambiental acontecerá em breve, aposta, mesmo que não seja no Egito: “Muita gente vai querer falar com Lula durante a COP e, certamente, ele vai priorizar os encontros com lideranças de outros países e deixar a conversa com os brasileiros para algum momento aqui no Brasil. Mas mesmo assim é muito importante a presença de Lula na COP. Será uma sinalização para a comunidade internacional de que ele tomou a decisão de encarar os problemas e desafios, que quer fazer algo, e que o Brasil deixou de ser pária e voltará a contribuir com os esforços globais”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De volta ao jogo”

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