CartaCapital

A tentação do justiceiro

Qual o limite que separa o exercício da liberdade de expressão na forma de críticas ferinas às instituições do Estado da incitação à violência e atentado à própria democracia constitucional? Recentemente, tal questão foi colocada em debate em mais de uma oportunidade, testando as esgarçadas […]

O presidente do PTB, Roberto Jefferson. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Apoie Siga-nos no

Qual o limite que separa o exercício da liberdade de expressão na forma de críticas ferinas às instituições do Estado da incitação à violência e atentado à própria democracia constitucional? Recentemente, tal questão foi colocada em debate em mais de uma oportunidade, testando as esgarçadas fronteiras que separam a democracia constitucional de direitos brasileira de um regime de contornos tirânicos.

Em tempos de obscurantismo, a resposta a esses dilemas está na capacidade das instituições de precisar e esclarecer os fundamentos de nossa democracia constitucional. Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal, justamente o poder da República que tem atuado mais fortemente na garantia da democracia, claudicou ao proferir algumas respostas em decisões sobre o direito de opinião.

Trata-se dos famigerados casos do ­deputado federal Daniel Silveira, do PSL, e dos ex-deputados Sérgio Reis, do PRB, e Roberto Jefferson, do PTB, episódios envolvendo os limites da liberdade de crítica às instituições do Estado e atentado a essas mesmas instituições.

Sendo o STF o órgão que acumula funções de tribunal constitucional e de Suprema Corte, além de outras competências relativas ao contencioso penal e federalismo, causou alguma estranheza a instauração de inquérito pelo tribunal para apurar eventuais infrações penais. Contudo, conforme nos ensina Lenio Streck e Marcelo Cattoni, estando sob contempt of court, legitima-se a autodefesa pela Corte.

Em outras palavras, o próprio STF adota medidas para responder aos ataques e às omissões dos órgãos comuns de persecução penal (Polícia Federal e Ministério Público Federal), uma vez que intimidação, ameaças ou constrangimentos lançados sobre o funcionamento da Corte afetam o próprio sistema de garantias de direitos. Não há, portanto, que se falar em violação ao sistema acusatório a instauração de inquéritos, no STF, para investigar fake news e atos atentatórios à democracia. Por que, então, o Supremo manquejou ao fixar os limites dos direitos à liberdade de expressão e de manifestação do pensamento?

Na prisão de Silveira, ainda que a conduta devesse ser investigada, não caberia o enquadramento como infração permanente em veiculação de vídeo nas redes sociais. Além disso, o uso da Lei de Segurança Nacional, entulho autoritário repleto de imprecisões conceituais, foi bastante descabido. Não à toa, essa lei passou por revisão legislativa.

Já a prisão preventiva de Roberto Jefferson justifica-se no mérito, mas se mostrou pobre em fundamentação, pois era preciso explicitar que suas manifestações ultrapassaram as balizas da liberdade individual ao pregar, de forma sistemática e reiterada, a violência e o ódio dirigidos às instituições públicas e ao processo eleitoral. Finalmente, a busca e a apreensão em face de Sérgio Reis foram adequadas, uma vez que sua conduta lançou dúvidas sobre se se tratava de uma articulação para a realização de ato violento contra as instituições ou se era recurso retórico.

O cerne do problema reside no déficit do exercício de sua função pacificadora por parte do STF quando este se exime de fundamentar com mais precisão suas decisões. Nos três casos, ficaram nebulosos os limites da legítima convivência entre distintas visões razoáveis e concorrentes de mundo. Note-se que não se trata de mero dever de fundamentação, mas de uma relevante contribuição para o debate e a estabilização sociais.

Praticar a crítica à ação estatal e aos agentes governamentais é fundamento indissociável da cidadania. Uma democracia ampla e plural precisa conviver com discursos díspares, extremistas até, ou arrisca-se a virar “ditadura de centro”. Nesse sentido, decisões do Estado, incluídas as do STF, podem e devem ser criticadas, pouco importa se a crítica é tecida em tom comedido e cordial ou se se reveste de teor ácido ou desequilibrado.

Não será o tom usado para a crítica que vai caracterizar um atentado ou incitação à violência. Mas é, sim, transgressão da fronteira do livre exercício da crítica deslocar as violências do campo da abstração e da retórica para o da conduta específica e concretização dos extremismos expressados em discurso.

O direito à liberdade de expressão não é, portanto, um salvo-conduto para se cometerem crimes. Tratamento mais restritivo da liberdade de expressão deve se dar nos casos de discurso de ódio contra minorias. Discursos homofóbicos, racistas e machistas não são aceitos como meras expressões de ideias, porque se dirigem a populações específicas e contêm conteúdo de violência e discriminação.

O momento de crise exige das instituições a definição mais clara desses limites, não apenas robustecendo a nossa democracia, as garantias e a Constituição, mas também afastando ministros do STF da tentação de agirem como justiceiros. O Supremo podia mais. Ainda pode.

Publicado na edição nº 1173 de CartaCapital, em 2 de setembro de 2021.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo