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11 de Setembro, uma tragédia de erros

“Temos mais guerras, mais refugiados, mais miséria e mais terrorismo. Tudo em nome da liberdade”, escreve José Sócrates

Olho por olho. Os serviços secretos norte-americanos levaram uma década para eliminar Bin Laden, mentor dos atentados. (FOTO: Hubert Boesl/DPA/AFP e AFP)
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A queda de Cabul não tem apenas a ver com o Afeganistão, mas também com a “guerra global ao terror”. Em 14 de setembro de 2001, o Congresso norte-americano aprovou a lei com 60 palavras que permitiu o uso da força: “O presidente é autorizado a usar toda a força necessária e apropriada contra as nações, organizações ou pessoas que ele constatar terem planejado, autorizado, cometido ou ajudado os ataques terroristas ocorridos em 11 de setembro ou tenham albergado essas organizações ou pessoas…”

A votação foi quase unânime, 420 votos a 1. A congressista que votou contra a medida considerou que a lei conferia um poder demasiado discricionário ao presidente e lembrou os norte-americanos que deviam se proteger do espírito de vingança de modo a que “as nossas ações não nos transformem no mal que agora deploramos”. Ninguém quis ouvir. E, no entanto, foi exatamente o que aconteceu. Vinte anos depois, a lei continua em vigor.

Dois anos depois do Afeganistão, veio a invasão do Iraque, justificada com um monumental embuste histórico. Mais tarde, viria o episódio de Abu Ghraib, momento em que o mundo ficou a saber que o Exército dos EUA torturava seus prisioneiros de guerra. Pior ainda, os norte-americanos ficariam também a saber que o seu Departamento de Justiça tinha elaborado os infames “memorandos da tortura”, que legalizavam as práticas de interrogatório, usando métodos em flagrante desrespeito pela convenção internacional. Surgia também o debate a propósito dos prisioneiros de Guantánamo. Se eram prisioneiros de guerra, não podiam ser interrogados. Se eram criminosos, tinham direito a advogado e ao devido processo legal. Nem uma coisa nem outra. Os Estados Unidos criariam uma nova e ambígua categoria de “combatentes ilegais”. Nem proteção da Convenção de Genebra nem proteção do Estado de Direito.

Como previu uma congressista, os EUA se transformaram no mal que deploravam

No mandato de Barack Obama, a guerra tomaria outro rumo. Depois da desgraça que se adivinhava no Afeganistão e no Iraque, a guerra ao terror deveria prosseguir sem mais invasões e com menos tropas no terreno. As ações deviam agora se concentrar na eliminação de alvos de supostos terroristas. O drone armado revelar-se-ia a arma adequada para a tarefa, de modo a evitar o embaraço das detenções. A política de guerra deixou de ser prender para interrogar e passou a ser matar em vez de capturar. O assassinato-alvo virou política contraterrorista oficial.

 

Em 2012 o New York Times descrevia o que chamou de “o mais estranho dos ­rituais burocráticos”, a reunião semanal dos vários serviços de segurança para trocar impressões sobre a biografia dos suspeitos de terrorismo que constituiriam os próximos alvos. Nomes aprovados, a tarefa era depois passada aos drones. A reunião era liderada pelo próprio presidente, que, no fim, tomava as decisões. Chamavam-lhe “a terça-feira do terror”. Os ataques de drones levaram a guerra a ­países oficialmente em paz com os Estados Unidos, como o Iêmen, a Somália, a Líbia, a Síria e, sobretudo, o Paquistão, que em 2012 tinha ataques de drones de quatro em quatro dias. A guerra espalhou-se e alastrou-se, levando a violência e a instabilidade a todo o Oriente Médio. Também a controvérsia jurídica mudou de tema, deslocando-se dos prisioneiros de guerra para os ataques de drones – para as Nações Unidas esses ataques representavam “execuções sumárias” ilegais, arbitrárias e contrárias às leis da guerra.

Mais tarde viriam os refugiados e, com eles, a tragédia europeia. Em 2015, o número de refugiados chegou aos 60 milhões, a maior parte deles oriunda das intermináveis guerras do Oriente Médio e da mais recente guerra civil síria. A resposta europeia foi construir novos muros fronteiriços e reforçar as políticas de segurança. O direito internacional que protege os refugiados, criado por europeus e para responder aos problemas das guerras europeias, não podia contar com a Europa atolada num pântano político e moral que continua até os dias de hoje. A crise revelar-se-ia um desastre para a reputação internacional da União Europeia.

Ao mesmo tempo dos refugiados, também o atentado terrorista chegava à Europa. O combate ao terrorismo não acabou com ele, mas o espalhou. Os Estados Unidos contabilizaram 348 ataques em 2001. Quatro anos mais tarde, esse número aumentou para 11.774. Vinte anos depois do início da guerra contra o terrorismo, talvez fosse esta a primeira pergunta a fazer: Deu certo? Acabamos com o terrorismo? Diminuíram? Foram contidos? Não me parece. A guerra ao terrorismo fez o que habitualmente as guerras fazem – escalou a violência.

Eis no que penso quando a guerra ao terror completa 20 anos. Eis no que penso quando vejo as imagens de Cabul. As televisões ocidentais falam das mulheres afegãs. Eu também penso nelas. Mas não esqueço que esta guerra custou 8 trilhões de dólares e custou a vida de 900 mil civis e militares, segundo os últimos números do projeto “Custos de Guerra”, da Brown University. Não esqueço que esta guerra, que parece interminável, levou a violência e a desestabilização ao Oriente Médio. Não esqueço que nos trouxe de volta a legalização da tortura em tempos de aflição. Não esqueço os assassinatos-alvo como métodos de guerra, não esqueço que a guerra aumentou os ataques terroristas e os espalhou pelo mundo. Não esqueço os refugiados nem o “Patriot Act” e todas as leis que as democracias fizeram para reduzir a liberdade individual e aumentar os poderes estatais de repressão

Temos mais guerras, mais refugiados, mais miséria e mais terrorismo. Tudo feito em nome da liberdade. Quando o nevoeiro histórico levantar, veremos a dimensão da tragédia. Vinte anos depois, penso como Michel Ignatieff: “É a resposta ao terrorismo, mais que o terrorismo ele próprio, que tem feito pior à democracia”.

Publicado na edição nº 1174 de CartaCapital, em 9 de setembro de 2021.

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