Zumbido – Justiça antirracista

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Zumbido – Justiça antirracista

Por que precisamos de ações afirmativas para o Judiciário?

Com o ingresso de um número representativo de pessoas não privilegiadas no âmbito da magistratura, as percepções sobre injustiças tendem a se ampliar.

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Recentemente, participei de uma banca de monografia presidida pelo amigo e professor doutor Philippe Oliveira de Almeida, ocasião em que pude constatar como o contato com as questões raciais pode modificar a forma de perceber o direito já desde a graduação. Almeida leciona a disciplina Teoria Crítica Racial, no curso de Direito da UFRJ, e é um dos autores da obra Manual de educação antirracista, escrita em parceria com Adilson José Moreira e Wallace Corbo.

Diante da qualidade do trabalho monográfico, convidei a jovem Marina Fikota a apresentar um pouco da sua pesquisa aqui, no espaço que me é reservado, como forma de incentivo tanto para ela quanto para outros/as jovens que precisam apenas de boas oportunidades para mostrar os talentos que lhes são próprios.

Marina aceitou o convite e apresentou o texto a seguir, transcrito na íntegra, que nos provoca importantes reflexões e para o qual eu os/as convido à leitura:

“De terno escuro, sapato preto, cabelo cortado baixo, rosto liso e sem barba, o jovem advogado Eduardo Levi de Souza chega para a sua primeira audiência no Tribunal do Júri de Minas Gerais. Senta-se à mesa ansioso, com um brilho idealista nos olhos, consciente do número restrito de pessoas negras, como ele, naquela posição e da importância de ocupar aquele espaço. Suas expectativas são rapidamente frustradas pela primeira pergunta dirigida a ele pelo juiz: ‘O seu advogado não virá à audiência?’.

O relato é feito pelo próprio Eduardo Levi em seu livro Magistratura negra e seus modos de julgar: processos educativos, lugar de fala e engrenagem institucional. A indagação do juiz parte de um lugar de estranhamento. Eduardo ocupava ali um espaço que não fora pensado para ele. Por isso, mesmo seguindo todos os padrões de vestimenta e comportamento esperados de um advogado, ele não foi visto como um.

É fato conhecido que o Judiciário brasileiro, em suas mais diversas esferas, está constituído por uma maioria de indivíduos provenientes de grupos sociais privilegiados.  A partir da publicação do Censo do Poder Judiciário, de 2014, que mapeou pela primeira vez o perfil dos magistrados e servidores, o Conselho Nacional de Justiça vem desenvolvendo pesquisas regulares que mostram como os setores sociais marginalizados estão sub representados nos tribunais.

A homogeneidade no perfil dos juízes faz com que concepções de país que só têm sentido para uma camada privilegiada pareçam majoritárias para os julgadores, que tendem a “naturalizar” sua posição social. As vivências e saberes das partes, quando essas são pobres, negros, mulheres, pessoas com deficiência, LGBTQIA+, ou integrantes de outras minorias políticas, são ignoradas ou entendidas como inaplicáveis ao contexto jurídico. Com isto, muitas vezes, os processos são julgados sem a necessária escuta ativa às falas dos jurisdicionados, e o único contato que o juiz tem com eles se dá de forma hierarquizada, em espaços nos quais este exerce alguma forma de poder.

Esse quadro mostra a importância das ações afirmativas para o Poder Judiciário. Elas deslocam os indivíduos marginalizados da posição de objetos da ação jurisdicional para a de sujeitos do exercício da jurisdição.

Assim, a diversificação do perfil dos magistrados, servidores e estagiários, além de compensar mecanismos de exclusão, também tem como consequência a democratização da própria cultura judicial.

Isso ocorre, primeiramente, pela inclusão de novas formas de agir e pensar no meio da magistratura. As pessoas não são essencialmente diferentes em razão de características como classe social, raça, gênero, deficiência ou orientação sexual, mas, devido a esses marcadores, elas tendem a vivenciar experiências diversas ao longo da vida. Crescemos e aprendemos a enxergar o mundo e a nós mesmos a partir do lugar em que nos inserimos socialmente. Essas diferenças moldam a sociedade e é necessário que elas coexistam, também, dentro do Judiciário.

Outro resultado benéfico do ingresso de minorias políticas na magistratura é o incômodo e o constrangimento gerados frente a posturas discriminatórias. Falas, atitudes e visões preconceituosas sobre grupos minoritários se tornam menos frequentes quando elas se referem a colegas de trabalho. Tanto porque a convivência cotidiana demonstra que esses estereótipos, que permeiam o imaginário social, não correspondem à realidade observada, como porque tais comportamentos atingem pessoas próximas, deixando de ser tido como aceitáveis ou engraçados. Desfazem-se, assim, ficções deturpadas de diferenciação e hierarquização de pessoas.

Esse processo de transformação pode se dar de forma ainda mais efetiva se as políticas de acesso e permanência de minorias no Judiciário forem simultâneas à inclusão de pautas sociais na formação contínua dos magistrados. Com o ingresso de um número representativo de pessoas não privilegiadas no âmbito da magistratura, as percepções sobre injustiças tendem a se ampliar. Isso estimularia o debate sobre questões discriminatórias, que, por sua vez, fortaleceria a pauta de ações afirmativas, constituindo um ciclo positivo de inclusão.

A inserção de indivíduos ‘diferentes’ em espaços antes frequentados apenas por ‘iguais’ pode, se em quantidade significativa, provocar uma desejável democratização institucional. Em um país tão plural quanto o Brasil, marcado pela convivência desigual e hierarquizada de povos e culturas, é especialmente relevante que se garanta a diversidade nos quadros da magistratura. As ações afirmativas são um caminho necessário para que o Poder Judiciário possa exercer seu papel como último garantidor dos direitos individuais, coletivos e sociais, previstos na nossa legislação, de forma equitativa e antidiscriminatória.”

 

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