Lucia Helena Silva Barros de Oliveira

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro; atual coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Mestre em Direito.

Opinião

O Massacre de Sharpeville e a ideia de superioridade racial do povo branco

O Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, celebrado em 21 de março, foi instituído pela ONU em razão de um crime ocorrido na África do Sul, em 1960

Reprodução: UN Human Rights/Sharpeville massacre - looking back to move forward/YouTube
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É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

Águas de Março, Tom Jobim

Com o término do verão e a crença perene na renovação da vida, destaca-se o Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, celebrado em 21 de março, marcando o início de uma nova estação e a pretensão de dias melhores para nosso povo.

O dia 21 de março foi instituído pela Organização das Nações Unidas em razão do Massacre de Sharpeville, ocorrido na África do Sul, em 1960. Nessa ocasião, cerca de sessenta e nove pessoas perderam a vida e cento e oitenta e seis ficaram feridas. Mas como explicar um evento dessa natureza? Como e por que houve esse massacre de jovens negros se, na África do Sul, os brancos sempre foram minoria?

É provável que a explicação encontre alicerce na ideia de superioridade racial do povo branco, alimentada pela segregação racial e pela falta de direitos políticos e civis da população negra. Os brancos sempre exerceram domínio sobre o povo negro, o que talvez seja o indicativo dessa tragédia lembrada no 21 de março.

É notório que, na África do Sul, imperava o regime de segregação racial (o denominado apartheid), imposto pelo Partido Nacional, de extrema-direita. Esse regime, marcado por centenas de leis, enquanto segregava as pessoas negras, garantia diversos privilégios à minoria branca. Os negros, portanto, não podiam circular livremente pelo país, sendo mantidos em isolamento. A circulação das pessoas negras nos núcleos urbanos se dava mediante a apresentação de um passe, e a identificação racial era obrigatória em seus documentos pessoais. A educação fornecida ao povo negro também era diferenciada — ou era negada ou limitada —, assim como os direitos básicos. Tudo era diferenciado, de modo a assegurar as regalias das pessoas brancas.

Entre tantas ações deletérias impostas ao povo negro, destaca-se a “Lei do Passe”, por meio da qual as pessoas negras eram obrigadas a habitar em territórios chamados “Bantustões”. Esses territórios apresentavam uma “aparência” de liberdade. Neles, pregavam, falsamente, que as negras e os negros poderiam viver livremente. A verdade, contudo, é bem outra, pois tais áreas serviam para o controle desse povo. Sim, porque esse povo somente podia deixar o Bantustão e ir até o território das pessoas brancas se fosse na condição servil de mão de obra barata.

O bairro Sharpeville, que inspirou o nome dado ao Massacre de Sharpeville, situava-se na cidade de Johannesburgo e foi palco de uma luta contra a Lei do Passe. Por força dessa lei, as pessoas negras tinham de portar uma caderneta contendo informações como, por exemplo, o local aonde podiam ir, sua etnia e a profissão, tudo com o fim de o Estado ter o controle sobre esses indivíduos. Após as 22h, a entrada no bairro branco somente ocorria mediante autorização do governo. Assim, se o negro não estivesse portando a caderneta, seria automaticamente preso.

Mas o povo negro não se conformava com essa vil situação e, em 21 de março de 1960, quando várias pessoas foram para as ruas com o fim de protestar de forma pacífica, reivindicando a extinção da Lei do Passe, depararam com um grupo de policiais que, ao reagir àquele protesto pacífico, assassinou sessenta e nove jovens negros. A data, portanto, tornou-se símbolo do combate à discriminação racial.

Não pensemos, porém, que a política de segregação se fez presente apenas na África do Sul. Do outro lado do mundo, nos Estados Unidos, lembramos as Leis de Jim Crow, responsáveis por diversas desigualdades entre pessoas brancas e negras. Segregação nas escolas e proibição de casamento entre pessoas brancas e negras são alguns exemplos que ilustram essa triste época.

Também no Brasil, muito embora não tenha havido leis expressas impondo a política de segregação racial (apartheid), constata-se a imposição da separação entre brancos e negros de “forma natural” — se é que é possível chamar de natural algo desse tipo. Assim, o Brasil testemunhou e vivenciou, durante anos a fio, as universidades formarem uma maioria branca de médicos, engenheiros, advogados, juízes, ministros etc., enquanto os negros não conseguiam ter acesso a esses lugares, exatamente por causa de sua condição social e da quase total carência de oportunidades. Por outro lado, assistimos à presença marcante de pessoas negras em favelas, em empregos de baixa renda, fora dos espaços de poder e — lamentavelmente — retratando a maioria no sistema carcerário brasileiro.

Em nosso país, a segregação é imposta independentemente de leis, de forma velada! Não há uma determinação legal nesse sentido, mas o povo negro sente na pele a política do apartheid, imposta em bairros, escolas, universidades, programas de saúde… Enfim, uma política que se faz presente em vários espaços.

Nesse contexto, embora não previsto na legislação brasileira, o apartheid existe entre nós — e precisamos ter a coragem de reconhecer esse fato e verbalizá-lo. Em pleno século 21, assistimos à exclusão de nosso povo negro, sem que sequer essa política de exclusão seja nomeada. Percorrendo o Brasil, observa-se que, em alguns lugares, o Estado não tem o menor cuidado: esgoto a céu aberto, falta de infraestrutura, falta de saúde, ou seja, as mazelas estão escancaradas. A presença do Estado é demonstrada apenas pelo braço da força, que age de forma violenta para impor a tão sonhada ordem.

É necessário fazermos o “trabalho de casa” e reconhecermos que existe, sim, um regime de segregação racial entre nós. Eventuais mudanças dependem disso. É importante denunciarmos a existência de privilégios da população branca, de forma a deixar de reforçar as desigualdades existentes, com vistas a dar um fim à política do apartheid entre nós. Sim, há um apartheid, que ouso chamar de silencioso e invisível no Brasil, algo que deixa cego um grande número de pessoas e, que, certamente, tem seu alicerce nos anos de escravidão vividos pelo povo negro, algo que se reflete ainda na atualidade. É como disse Joaquim Nabuco, grande escritor abolicionista: “Não basta acabar com a escravidão. É preciso destruir sua obra”.

Retomando a questão da África do Sul, que serviu como móvel para se reconhecer o Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, constata-se que, nos Estados Unidos, muito embora o regime de apartheid tenha sido oficialmente encerrado, ainda é preciso percorrer muitas trilhas e abrir inúmeros caminhos para erradicar a política separatista e preconceituosa. No Brasil, o trabalho talvez ainda seja um pouco árduo, pois aqui é preciso primeiro reconhecermos a existência dessa política separatista para, só então, estarmos aptos a tentar erradicá-la de nossa sociedade.

Mas, motivada pela necessidade de reflexão sobre o importante dia 21 de março, e chegando ao final destas breves linhas, convocamos todas e todos a lembrar as palavras de Nelson Mandela, que conclamava a reconciliação:

“Eu lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra. Eu tenho prezado pelo ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas possam viver juntas em harmonia e com iguais oportunidades. É um ideal pelo qual espero viver e que espero alcançar. Mas, caso seja necessário, é um ideal pelo qual estou pronto a morrer.”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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