Zumbido – Justiça antirracista

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Zumbido – Justiça antirracista

Mulheres negras na luta por moradia e sustento em Salvador/BA

Articulações do movimento de moradia lutam pelo direito das mulheres que moram no Centro Histórico de Salvador

Pessoas andam pelo Centro Antigo de Salvador. Foto: Camila Souza/GOVBA
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Até o ano de 2021, segundo os dados extraídos da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua – PNAD Contínua (2012-2021), o Brasil tinha, entre os seus 212 milhões e 650 mil pessoas, 47% da população autodeclarada parda e 9,1%, negra. Ocorre que quando observado os espaços de poder, os gabinetes das grandes empresas, a maioria dos parlamentares, secretarias e ministérios, vemos que essa realidade não é refletida.

Percorrendo qualquer bairro da região metropolitana de Salvador, é possível identificar facilmente que as mulheres negras (pretas e pardas) são um número expressivo da população e são elas que fazem circular um aporte singular dos bens e recursos para a sobrevivência das pessoas nas grandes cidades.

Uma constatação importante é que elas são as maiores atingidas pelos impactos da pandemia — o grupo populacional com o maior número de pessoas mortas pela Covid-19, tanto de acordo com a pesquisa do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio, quanto com o do Instituto Pólis — e é também o grupo que mais sofre com as violências correlatas, como os despejos e remoções coletivas.

Segundo a Campanha Despejo Zero, articulação nacional em defesa do direito à moradia, que atua na coleta de denúncias e fornece subsídios para a defesa dos ameaçados em processos de despejos e remoções forçadas, entre março 2020 e maio de 2022, 142.385 famílias foram ameaçadas de perder sua moradia e 31.421 famílias foram despejadas no Brasil. Desse total, estima-se que cerca de 341 mil mulheres estão ameaçadas de despejo e 75 mil foram despejadas.

Acrescente-se que esses dados registram um aumento de 393% no número de famílias despejadas e 655% de famílias ameaçadas nos últimos dois anos. Na Bahia, a realidade não é diferente. Durante a pandemia, 2.331 famílias encontravam-se em ameaça de despejo e 924 foram efetivamente despejadas.

Uma história que se repete….

O intelectual e político Sílvio Humberto ressalta que não é a primeira vez que a população negra se encontra como a mais atingida por uma pandemia. Segundo o autor, no texto “Negro drama: um olhar sobre Salvador nesses tempos de pandemia Covid-19”, publicado em 2020 na obra digital Na saúde e na doença: história, crises e epidemias – reflexões da história econômica na época da Covid-19:

A pobreza brasileira é multidimensional: tem cor, gênero, geração, região: é negra, feminina, juvenil, nortista/nordestina. […] Salvador apresentou, segundo dados do IBGE do 1.o ao 3.o trimestre de 2018, a maior desigualdade racial entre as capitais. Os brancos soteropolitanos estão situados entre os maiores rendimentos médios das capitais, ficando atrás somente de Brasília (DF).

Essa é a Salvador que se defronta, mais uma vez, com uma pandemia e teve seu último desafio, em 1918, quando aqui aportou a gripe espanhola.

É sabido que as dívidas históricas que o Estado Brasileiro tem para com a população negra não foram reparadas e que os diversos problemas estruturais enfrentados foram agravados com a pandemia. Entre eles, o acesso à moradia, ao trabalho digno, a saúde e a educação […]. Nesse sentido, no artigo citado, Silvio Humberto (2020, p. 111) complementa que

Durante os primeiros dias de isolamento social, provocado pela pandemia de Covid-19, a doença escancarou sua face negra e pobre […]. Bastou trancar as ruas que Salvador, a cidade de todos os pobres e herdeiros desvalidos do interminável dia 14 de maio de 1888, ficou sem os meios para a sobrevivência, muitos dos quais, herdados das estratégias elaboradas na saída da escravidão, sobretudo um “viver sobre si […]

No contexto citado, ressaltamos o dever de nos atentar aos relatos das mulheres que, intensamente atingidas pelos efeitos socioeconômicos da pandemia, reinventam formas de resistir.

 Relato das dificuldades pelas bocas das próprias mulheres…

Uma delas é Maria de Lourdes (nome usado para proteger sua identidade), uma mulher preta, moradora de uma ocupação na cidade de Salvador e que nos diz:

Moro no movimento há mais de trinta anos, pois não tinha lugar para onde ir, não tinha trabalho e até hoje não tenho trabalho. Meus filhos quando vieram para cá eram crianças, hoje são moças e rapazes não tinham trabalho e continuam sem ter trabalho, se colocarem a gente para fora daqui não tenho para onde ir.

Esse relato é dito enquanto outras mulheres ouvem atentamente e outra continua os afazeres na Associação. Não dá para todas pararem, sempre há coisas para fazer. Ao fundo do depoimento, sempre ouvimos o espremer e chacoalhar de vassoura.

Maria de Lourdes vivia do ofício de guardadora de carros e, entre 2020 e 2021, viu a renda obtida com seu trabalho se esvair, uma vez que a circulação foi bastante diminuída. Conseguiu se cadastrar no bolsa família para receber cerca de R$180,00. Após, com o auxílio Brasil, passou a receber R$400,00. Contudo, só o gás de cozinha está custando R$ 150,00. Ela afirma que “não come carne, apenas ovos, há muito tempo não sabe o que é comer carne”, se não for por doações ou cestas básicas. Sobre a pandemia, ela diz: “dizem que acabou, mas não acabou, tem dia que acordo de manhã e não tem um pão para dar aos meus filhos”.  Afirma que é uma pessoa que vive sonhando. E com o que ela sonha? “Só vivo sonhando. Vivo sonhando em ter a minha casa, de um dia eu ter um trabalho, de um dia eu poder me sustentar”, afirma.

Maria de Lourdes é uma mulher que busca algo que muitas mulheres negras desejam: ter um trabalho digno, condições de oferecer alimentação para os filhos comerem e um teto para dormir. Tudo isso está escrito na Constituição Federal, e ela sabe, mas ela sabe outra coisa… Que sem a luta coletiva, ela não tem nada assegurado. “Eu digo de coração que nunca aconteça esse despejo, pois para onde eu vou?”, pergunta. “Se não tem trabalho e não tem alimentação, só tenho aqui para moradia”, complementa.

Elas por elas…

É importante destacar que, com o modo urbanização das cidades brasileiras, e Salvador não fugiu à regra, o centro torna-se um local de disputas entre sujeitos e interesses antagonistas. De um lado, aqueles que desejam usufruir dos equipamentos e serviços públicos ofertados na localidade, garantir o mínimo de qualidade de vida ao diminuir o tempo de deslocamento entre sua moradia e trabalho, afirmar seu direito à moradia e trabalho no centro, no seu território. De outro, os interesses econômicos que visam utilizar o centro apenas no desenvolvimento de empreendimentos particulares ou turísticos.

Centro histórico de Salvador. Foto: Divulgação.

Em vista de tudo isso, as mulheres do território do Centro Antigo de Salvador se articularam juntando cinco coletivos: Movimento Sem Teto da Bahia, Ladeira da Preguiça, Gamboa de Baixo, Nosso Bairro é Dois de Julho e Ladeira da Conceição da Praia. Eles atuam em rede para garantir a permanência no território do Centro Antigo de Salvador/BA.  Nas palavras delas, é bem melhor:

Somos idosas, mulheres, homens, jovens e crianças e em sua maioria negras. Somos desempregadas, ambulantes, catadores de materiais recicláveis, trancistas, marisqueiras, pescadores, artesões e flanelinha, além de sermos oriundas dessa região central da cidade. Em quase toda a sua totalidade somos mulheres negras chefes de família, que assumimos papéis centrais como lideranças na luta pelo direito à moradia, permanência no território e o direito à cidade, mas que enfrentamos a insegurança alimentar e as dificuldades em prover a sua sobrevivência e de seus familiares. 

Todas essas questões levantadas impactam diretamente a organização e a mobilização dos movimentos e das comunidades que compõem a Articulação. Com a intensificação dos casos de vulnerabilidade social nas ocupações, é gerado também um quadro de desmobilização para as lutas diante da necessidade de garantir a sobrevivência, que é imediata, já que a fome não espera.

Na atual conjuntura, uma vez superadas as medidas restritivas da pandemia e com o retorno às atividades rotineiras, a realidade para as mulheres, porém, continua sendo a precarização das relações de trabalho e a informalidade. Considerando isso, torna-se urgente a elaboração de projetos de trabalho e renda aliados à formação política, voltados para as mulheres negras, nascidas, criadas no território, vivendo na iminência de serem despejadas para fora dessa região do Centro Antigo para as margens da cidade de Salvador.

É nesse sentido, e levando em consideração toda a complexidade social em que estão inseridas as mulheres da Articulação do Centro Antigo, elas afirmam: “construímos a Feira Criativa da Ocupação. Nesse local é comercializado verduras, legumes e frutas e instalaremos uma Praça de Alimentação, onde será comercializado lanches rápidos como Tabuleiro de Acarajé, Cachorro Quente, Pastel, Suco e o que for sugerido”.

Manter as famílias no Centro assegura a facilidade de se conseguir um bico e garantir o almoço, é mais fácil conseguir comprar uma caixa da água ou mesmo cerveja e fazer rapidinho uma grana, fazer passeio pelas igreja ou ou visitar estes e outro lugares, fazer um feijão  e outras ideias conforme a oportunidade

Esse é o projeto que elas têm pós pandemia […] E o Poder Público, quais os projetos?

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