Defensoria Pública e o encontro com a própria sombra: não veio do céu, nem das mãos de Isabel

Mentalidade colonizada e moral religiosa que permeiam a instituição precisam compor a necessária autocrítica

Atendimento da DPERJ as familias das vitimas da chacina do Jacarezinho. Fotos: Emilly Assunção e Matheus Reis

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O mês de maio é celebrado pelos profissionais das Defensorias Públicas brasileiras como “maio verde”, graças à lei n.˚ 10.448 de 2002, que instituiu o dia nacional em homenagem à instituição.

A escolha da data comemorativa tem origem na lei estadual nº 635 de 1982, do Estado do RJ. Em entrevista no contexto da pesquisa para o livro Defensoria Pública do Rio de Janeiro, memória e história, o defensor José Fontenelle Teixeira da Silva, uma das lideranças que, naquela época, articulou o projeto na assembleia estadual, revelou que a escolha do dia 19 de maio foi uma invenção sua, inspirada na figura de Santo Ivo.

Santo Ivo (originalmente, Yves Hélory de Kermartin), oriundo de uma família nobre da região da Bretanha, viveu no século XIII, na França, onde se dedicou à advocacia em prol dos pobres e exerceu a função de juiz eclesiástico. Foi declarado santo pelo papa Clemente VI e é conhecido como patrono dos advogados.

Ainda que nas celebrações oficiais, nos dias de hoje, não se encontre grandes referências ao santo católico, mas sim reflexões, debates e ações de grande relevância em prol do aprimoramento dos serviços e do acesso à justiça, fato é que a data carrega uma forte simbologia.

E a escolha de um nobre europeu, da idade média, santificado pela Igreja Católica e cujo legado consiste na advocacia como prática de caridade, tem um significado muito mais profundo do que se pode imaginar para a reprodução de uma determinada racionalidade no funcionamento dos serviços jurídicos patrocinados pela Defensoria.

Santo Ivo protege as viúvas e os órfãos. Pintura de Jacopo da Empoli (1616).


A dimensão simbólica em torno do festejado maio verde e do santo que o consagra é uma pequena amostra da cultura arraigada entre os profissionais da assistência jurídica pública no país, que merece nossa autocrítica.

Arrisco dizer: uma mentalidade ainda colonial em alguns aspectos, em grande parte contaminada por uma moral religiosa e que, por vezes, borra a distinção entre o dever de prestação de um serviço público de qualidade e a caridade. Por que não conseguimos superar o termo “assistido”? Usuários, por favor! Cidadãos usuários de um serviço público.

Inegavelmente a Defensoria Pública é mais uma estrutura do Estado impregnada dos mais de três séculos de colonização vividas nesta terra.

E, como não poderia deixar de ser, profundamente influenciada por um dos mitos mais abjetos – e racistas – que marcam o pensamento social brasileiro: o da inaptidão cívica do povo brasileiro, que exigiria das elites políticas o esforço de construir um Brasil “do alto”. O que, na seara do acesso à justiça, traduz-se para entregar cidadania/direitos “de cima para baixo”, dos detentores da técnica jurídica para os desassistidos, despossuídos, vulneráveis, hipossuficientes ou seja lá qual o termo preferido.

Sintomático é também o esquecimento de uma icônica referência pela Defensoria Pública. O poeta, jornalista e advogado, Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) foi um intelectual negro brasileiro do século XIX, autodidata, que viveu a experiência da escravidão e ao mesmo tempo foi o maior advogado de pessoas escravizadas que o Brasil conheceu, responsável por inúmeras “ações de liberdade”.

Sua atuação é apontada como responsável pela libertação de centenas de escravos e seria uma das primeiras lições de advocacia popular na história do país (FALBO e RIBAS Advocacia e lutas emancipatórias: o que há de político na advocacia? Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 1, 2017, pp. 507-555).

Merecem registro iniciativas recentes que procuram resgatar a memória de Luiz Gama, como a outorga do título póstumo de profissional da advocacia pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em conjunto com a Seccional paulista (2015), e a edição das Leis Federais n°. 13.628 e 13.629 (2018), que declararam Luiz Gama patrono da abolição da escravidão no Brasil e inscreveram seu nome no Livro dos Heróis da Pátria.

Entretanto, nem Luiz Gama, nem mesmo outros personagens emblemáticos das lutas populares por direitos no Brasil (a exemplo da piauiense Esperança Garcia ou dos advogados militantes do período da ditadura militar) integram as referências que compõem cultura e a identidade da assistência jurídica pública brasileira.

Atendimento da DPERJ as familias das vitimas da chacina do Jacarezinho. Fotos: Emilly Assunção e Matheus Reis

Corre nos corredores das Defensorias o desejo – ainda contido – de reparar este “lapso” e deslocar os símbolos para representações que não sejam inferiorizantes dos seus destinatários, mas que devolvam-lhes a sua própria história. Não veio do céu, nem das mãos de Isabel, a Defensoria Pública é fruto da luta popular por cidadania.

Contradições intrínsecas a uma instituição erguida sobre o chão da casa grande que é o sistema de justiça brasileiro. E que permanece prisioneira da imagem de santa salvadora dos pobres, em estado de negação da colonialidade e do racismo que lhe constituem, latentes no inconsciente coletivo da instituição.

A Defensoria Pública precisa encontrar sua própria sombra.


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