Justiça

A voz das Marias, Mahins, Marielles, Lorenas, Malês

Discurso de posse de única mulher contemplada pelas cotas raciais na Defensoria Pública de Goiás nos leva à reflexão.

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Recentemente comemoramos o Dia Nacional de Tereza de Benguela e estamos em plena discussão sobre importância, necessidade de permanência e de ampliação das cotas étnico-raciais no ensino superior, situação que também vivenciaremos logo mais em relação a mesma política afirmativa no âmbito do serviço público federal.

Neste início de agosto, a Defensoria Pública do Estado de Goiás empossou a primeira – e infelizmente única – defensora pública fruto da política institucional de cotas raciais. Ao ouvi-la discursar na cerimônia de posse, não me veio outra ideia senão apresentar na nossa Zumbido suas palavras. Compartilho com vocês parte essencial das reflexões marcadas pela lucidez, fruto da escrevivência, embebidas de interseccionalidade, proferidas por Lorena Borges Santos:

“Inicio a fala com um samba enredo que muito bem representa nossa cultura preta e popular. Desde que foi lançado em 2019 eu tive certeza que seus versos históricos precisariam ser exaltados:

‘Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
(…)
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês’
(História para ninar gente grande – Estação 1ª de Mangueira – Tomaz Miranda/ Ronie Oliveira/ Márcio Bola/ Mamá/ Deivid Domênico/ Danilo Firmino).

Esse samba enredo reflete justamente a luta social que as minorias enfrentam diariamente para viver com dignidade e romper com as estruturas sociais que retratam espaços privilegiados e de exclusão. O país que não está no retrato é justamente a população vulnerável, em especial a comunidade LGBTQIA+, as comunidades indígenas e quilombolas, mulheres, pessoas idosas, crianças e adolescentes, população preta e parda.

E por isso chegou a vez de ouvi-las. Tal missão cabe também à Defensoria Pública.

É necessário que nós, Defensoras e Defensores Públicos, agentes de transformação social, tenhamos empatia e solidariedade para ouvir e entender vivências que, muitas vezes, são distantes da nossa realidade e compreensão. O acolhimento das pessoas invisibilizadas é uma missão institucional e direito desses cidadãos. Inegável que essas pessoas, que procuram diariamente a Defensoria, têm, em sua maioria, raça, gênero e classe social marcados, de forma que tais marcadores identitários atravessam sua existência enquanto indivíduo.

A população vulnerável atravessada por esses elementos identitários requer uma escuta acolhedora que, por sua vez, lhe confira autonomia para participar do processo. Nosso papel não é somente representá-la, mas promover espaço em que sua voz seja ativa. Para além da autonomia e voz ativa na ocupação de espaços de privilégio e poder, é necessário que as minorias alcancem a noção de pertencimento a esses lugares. A população brasileira é composta por 54% de pessoas pretas e pardas, sendo que o pertencimento a participar de determinados espaços pode ser realizado através da política de cotas raciais.

Inicialmente parabenizo a inclusão de tal política no 3º concurso para ingresso na carreira de defensor e defensora pública do estado de Goiás. Trata-se de um marco histórico à instituição. Tal política precisa ser fortalecida e perpetuada para que as pessoas pretas resgatem o pertencimento a espaços de privilégio e poder. A população preta não quer somente ser vista como o público-alvo da instituição, a prática antirracista exige que também sejamos inseridos nos quadros da carreira.

A noção de pertencimento é muito significativa para criar sonhos, alimentar expectativas. Ressalto a minha primeira experiência aos 20 anos de idade ingressando na universidade pública através da política de cotas raciais. Foi nesse espaço de privilégio que pela primeira vez ao ver outras colegas pretas eu tive a sensação de que poderia ter uma formação, seguir uma carreira e vivenciar sonhos. No entanto, atravesso um paradoxo, pois, a minha conquista individual não representa uma vitória significativa do povo preto, e tenho ciência disso. Isso porque a maioria de nós enfrenta a fome, desemprego, racismo, violências. Ainda lutamos por sobrevivência.

Sendo a primeira cotista a ingressar na defensoria pública do estado de Goiás eu compartilho do mesmo sentimento de um ídolo meu, o qual é também uma das poucas pessoas pretas no automobilismo. Por coincidência, há poucos dias, Lewis Hamilton respondeu a atos racistas com a seguinte frase: é tempo de ação, não mais de aprendizado. Essa frase resume a necessidade de tempos que exigem práticas antirracistas que ultrapassem palavras escritas em folhas de papéis.

Por fim, gostaria de ressaltar a paridade de gênero muito significativa no nosso 3º concurso. É um orgulho o ingresso de tantas mulheres que agregam uma perspectiva de gênero na prática cotidiana da instituição. Nesse contexto, enquanto mulher preta ocupando um espaço privilegiado, eu gostaria que nossa prática cotidiana fosse para além do conceito de sororidade. A sororidade em breve síntese representa uma união, compreensão da vivência de outra mulher. A autora Vilma Piedade nos apresenta uma perspectiva racializada que consiste na ‘Dororidade’ o qual requer a compreensão da dor que atravessa a pluralidade de mulheres. Segundo a autora é ‘Dororidade, pois, contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo Racismo. E essa Dor é preta’. É necessário adotar essa perspectiva em nossos atendimentos para ampliarmos o projeto emancipatório das nossas assistidas”.

*

O que o discurso de Lorena nos ensina? Que assim como na maioria das demais instituições públicas, a política afirmativa de cotas raciais está longe de alcançar seus objetivos. Que precisamos defender esse importante instrumento de efetivação de cidadania negra, indígena e quilombola. Que a alteração nos critérios de ingresso e nos regulamentos e editais dos concursos públicos é imprescindível para a real efetivação real da prática institucional antirracista. Que a presença da diversidade oxigena os órgãos públicos e engrandecem os serviços prestados à população. E inúmeros outros “quês” que não caberiam no presente texto.

À Lorena, recebo-te como irmã, sabendo que muita luta nos espera e que caminharemos juntos em muitas batalhas. E se posso te deixar uma palavra de recepção, uso as lançadas por Conceição Evaristo: “O importante não é você ser a primeira, o importante é você abrir caminhos“. Vamos. De mãos dadas, corações abertos e muita resistência!

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