Gilmar Bittencourt Santos Silva

[email protected]

Defensor Público do Estado da Bahia. Doutor em Políticas Públicas e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador. Autor do livro jurídico intitulado Direitos dos Remanescentes de Quilombolas: Dimensão de um Direito Constitucional, editora Revisão de Texto/Ciags/UFBA, 2018.

Opinião

A eleição passou e agora? Sobre a titulação de terras aos povos negros e indígenas

‘Vamos precisar discutir alguns temas: entre eles a relação dos povos da tradicionais e o desenvolvimento’

Quilombo dos Palmares (Foto: Guilherme Soares Dias/Guia Negro)
Apoie Siga-nos no

A última eleição dá um ponto final no golpe legislativo-midiático-judiciário que se abateu sobre o Brasil nos anos de 2016, e tem neste ano o seu ponto de inflexão. Chega-se ao momento em que politicamente não há mais aprofundamento nem interesses comuns entre os atores do golpe de 2016.

Contados os votos e definida a direção, creio ser importante voltar a discutir o quadro atual; contudo, a ideia de um desenvolvimentismo centrado no trabalho formal e no Estado de bem-estar social é impossível. O financiamento do Estado no desenvolvimento parece pouco factível. Não há novos mercados a buscar, não se pode transformar a natureza, como em outras quadras e como outras nações o fizeram, como se não houvesse o amanhã.

Vamos precisar discutir alguns temas: entre eles a relação dos povos da tradicionais e o desenvolvimento.

O Estado deve existir, todavia não pode ter função indutora de um capitalismo tardio de novos centros industriais, nem mesmo ser um ente omisso esperando os lances dos jogadores de xadrez do mercado. E este tabuleiro — o Mercado — não pode ser o lugar das decisões importantes.

Inclui-se a discussão dos direitos das comunidades tradicionais como um aspecto reparatório, o que por muito tempo permanecerá assim. Óbvio que isso se origina das condições históricas de proibição de acesso a terras pelo direito oficial brasileiro (Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850), contudo as práticas dos povos tradicionais, que adentram os debates como destinatários de políticas reparatórias, agora passam a ser o centro do debate do desenvolvimento ao qual todos os modelos de Estado e de economia devem estar vinculados.

Além disso, estratégias de produção sustentável próximas aos mercados consumidores e sem exaurimento da terra, bem como os processos de simplificação do uso de uma indústria de ciclos de produção sem resíduo, devem ter como ponto de partida as formas e produção das comunidades tradicionais. Mas, como seria possível neste momento? O atual momento deixou de ser uma alternativa, só é possível pensar a realidade construindo uma nova estrada.

Como disse no início, não existem novos mercados a desbravar com velhos produtos industrializados, nem existe o caminho de explorar a natureza, portanto resta, neste momento do mal-estar civilizatório, reolhar para as práticas sociais comunitárias que permitiram que águas e terras pudessem manter suas populações, e ainda existirem, mas tudo isso implica numa nova produção e, assim, numa outra produção de conhecimento.

É preciso incorporar os outros conhecimentos reconsiderando a produção e contribuições das diversas populações. E trato aqui de uma literatura jurídica que considere as práticas sociais dessas comunidades.

Repensar os discursos jurídicos, reconhecer os modelos probatórios existentes como excludentes, debater a proteção econômica e os modelos de seguridades sociais implicam um esforço jurídico de superação do positivismo desses modelos, mas obriga o “crítico” a proposições e a uma construção de uma prática jurídica, no caso, uma investigação jurídica. Impõe-se, portanto, um inquérito pluralista antirracista.

Um futuro antirracista

Considerando que as práticas históricas dessas comunidades foram capazes de produzir direitos que em muitos casos foram suficientes para conservação de condições ambientais mínimas para reprodução da vida, direitos humanos e direitos sociais (muito antes de esses direitos virarem modinhas jurídicas), cabe retornar a essas dimensões como forma de salvação da nossa forma de vida, ou melhor, de uma forma de vida humana. Esta deve ser a missão.

Tudo isso só será possível num olhar antirracista que envolva uma nova categoria de critério de controle de absorção normativa, ou seja, além da legalidade, constitucionalidade e convencionalidade; para um novo desenvolvimento, é preciso que ele seja antirracista, que não naturalize práticas sociais que desconsideram a produção e a forma de vida de grupos e pessoas não brancas.

Uma das missões mais urgentes é a luta pela revogação das diversas normas que ainda pendem repletas de racismo, ainda que não diretamente, mas de forma a construir mecanismos ou interpretações racistas, como nos ensina Silvio Almeida.

Para essa tarefa, lembro que as comunidades tradicionais são parte do contexto de modificação da natureza e até de processos aparentemente reconfiguradores, mas que, em verdade, colocam-se como de impactos absorvidos pela natureza. Existe uma diferença entre o extrativismo num quilombo e a exploração das madeireiras nos mesmos territórios. Proteger a natureza não pode simplesmente impedir pessoas de ser parte dela.

O raciocínio diverso que exclui as comunidades tradicionais do uso da terra para privilegiar a natureza também é uma forma de necropolítica.

Todas as formas de uso de políticas públicas para excluir populações tradicionais têm como resultado destruir a forma de vida ou mesmo eliminar as pessoas, e a retirada dessas populações ou o embaraço para sua permanência tem o efeito de sua eliminação.

Vemos cotidianamente projetos e obras que retiram a possibilidade de acesso a recursos (a própria terra) dos quilombos, e como resultado, aquelas mesmas pessoas que serviram para manter os territórios com seus recursos em ótimas condições, inclusive água, são forçados a sair, o que é também uma morte de per si, como disse uma morte de uma forma de vida. Por esse desiderato é que a necropolítica deve ser encarada como uma forma de atuação política em que o Estado nas diversas áreas de regulação, execução e fiscalização de políticas públicas, coloca deliberadamente em risco a vida grupos ou formas de vida.

Representantes de comunidades Quilombolas no plenário do STF. Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Então é importante dizer que a política de matar não é uma novidade e nem é algo estranho a própria condição de sociabilidade, ela é parte de um poder residual de qualquer Estado, como nos ensina Achille Mbembe. A necropolítica avança sobre isso, ainda que haja estudos avançados sobre a necropolítica, ela ainda é um conceito com implicações desconhecidas na projeção da políticas públicas de futuro. Ninguém sabe como um jovem que sofre tantas ausências de Estado (omissão) combinados as violências (ação) poderá formar sua sociabilidade, ainda que em comunidades tradicionais.

Uma outra proposta surge à Necropolítica, A Política da vida. Logo, deve-se varrer para longe os diversos projetos contra as comunidades tradicionais — e eles existem aos montes, por exemplo: o Projeto de Lei 191/20, sobre a mineração em terras indígenas e o Projeto de Lei 490/2007, que requer a mudança na forma de demarcação de terras, devem ser arquivados. Fundamento, por serem racistas.

E ainda sob o resultado atordoante das urnas, temos ainda que assegurar que os valores de reprodução cultural dos povos tradicionais sejam respeitados. Desde 2009 atuo em comunidade quilombolas e existem várias propostas de desenvolvimento dessas comunidades pensadas por elas mesmas. Algumas dessas propostas envolvem a constituição de indústrias de transformação totalmente viáveis no cenário de manutenção da natureza, mas esbarram na ausência de titulação de territórios.

A regularização do território é realizada sob a norma do Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, o qual é regulamentado pela Constituição Federal; contudo, o decreto já se mostra atrasado frente às necessidades urgentes de definição de território. O decreto também seguindo o quanto prevê a convenção OIT 169 precisa contemplar a implementação de protocolo de consulta prévia “ livre e informada”, como bem lembra o Mestre Johnny Giffoni.

É preciso que o Estado brasileiro reelabore seu direito no campo com saberes de representantes de comunidades quilombolas, movimentos negros, além de órgãos do Estado, e juristas predominante envolvidos com a temática e inclusive servidores ligados a serviços de titulação de terras) e no ano de 2023 (20 anos depois do decreto 4887/ 2003) e reavalie sua produção, efetivando mudanças. Este diploma serviu ao intuito de fazer iniciar o processo de titulação, mas não está sendo capaz de conclui-lo. Contudo, não se pode parar nisso.

Para exemplificar num Estado como a Bahia, desde 2003 só há uma comunidade devidamente titulada depois de duas décadas (Rio dos Macacos). Se o decreto é constitucional, ele é racista, pois não foi capaz de regularizar as terras necessárias à vida nos quilombos. Para ter ideia do absurdo quando em todo o país, já no século XIX havia uma redução do comércio transatlântico, aqui esse não só se intensificou, como se tornou a grande força motriz da economia do Estado. Não à toa no finalzinho da escravidão virou até estado exportador de escravizados.

Dito tudo isso, é preciso fortalecer o pavimento jurídico para acesso à terra ao povo preto.

É o único caminho.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo