Justiça

Sobre “tigrões”, “tchutchucas” e liberdade de expressão

Adjetivo a ministro carrega o belo, porém o débil, fraco, passivo e maleável, o que reforça e naturaliza estereótipos sexistas de dominação

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A sabatina do ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre a reforma da previdência na Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados, no dia 03 abril, foi bruscamente interrompida por um fato inusitado e que, aparentemente, nenhuma relação possui com as mudanças propostas pela equipe econômica ou com os impactos das possíveis mudanças na vida de milhões de trabalhadores, aposentados e pensionistas. A sessão já durava mais de seis horas, quando o deputado Zeca Dirceu afirmou que o ministro age como “tigrão” em relação a idosos, agricultores e mais pobres, mas como “tchutchuca” com a “turma mais privilegiada do nosso país”.

O ministro revidou “tchutchuca é a sua mãe e a sua avó” e a sessão terminou com sua saída entre xingamentos e agressões para todos os lados. Houve quem aplaudisse o deputado e houve quem o repudiasse, por uma suposta falta de decoro. Nas fileiras em defesa do ministro, o próprio autor da música que popularizou as expressões divulgou nota em que “lamenta o fato do deputado em questão ter ofendido o ministro Paulo Guedes, que além de ser uma autoridade é um senhor de idade e merece respeito”.

Mas, por que o ministro teria se sentido tão ofendido, a ponto de perder o controle emocional e, não após ter “ofendido” a “mãe e a avó” do deputado, ter por encerrado o debate? O que há de tão ofensivo em ser chamado de “tchutchuca”?

As expressões “tigrão” e “tchutchuca” se popularizaram com o sucesso do grupo “Bonde do Tigrão”, no início dos anos 2000, com os hits “Tchutchuca”, “Cerol na mão”, “Tchutchuca treme o bumbum”, entre outros.

Não é a primeira vez que letras de músicas da banda de funk “Bonde do Tigrão” estão imersas em polêmicas.

As músicas “Tapinha não dói” e “Tapa na cara” foram alvos de intensas discussões à época em que lançadas, inclusive na esfera judicial [1]. A proibição da veiculação das músicas foi requerida pelo Ministério Público Federal e por ONGs de defesa dos direitos das mulheres. Um dos argumentos da ação judicial que pediu a interdição fundamentou-se, em síntese, na afirmação de que as músicas contribuíam, de forma relevante, para a naturalização da violência contra a mulher, pela banalização de atos violentos como formas “aceitas” no contexto das relações entre os sexos, ensinando inclusive crianças a repetir tais padrões.

Em sentido contrário, a corrente que não via razões para proibir a veiculação das músicas, utilizou como eixo central de sua argumentação o direito à liberdade de expressão dos compositores, já que a interdição das músicas inibiria o debate sobre a violência de gênero, ou seja, a proibição atuaria como censura, impossibilitando a própria reflexão da sociedade sobre o tema.

Ainda que os fatos ocorridos na CCJ, durante a sessão de discussão da reforma da previdência não envolvam “tapinhas” ou “tapas na cara”, como nas demais letras dos funks do Bonde do Tigrão, não é preciso muito esforço analítico para constatar que as associações da figura do “Tigrão”, com a conotação de coragem, força e virilidade a características essencialmente masculinas e da “tchutchuca” a algo belo, porém débil, fraco, infantil, passivo e maleável, como características femininas, reforçam e naturalizam estereótipos sexistas de dominação masculina e de opressão às mulheres.

Em paralelo com o debate parlamentar, na discussão judicial sobre a proibição das músicas, o fato de expressões como “tchutchuca”, “tapinha não dói”, “tapa na cara” e outras similares, utilizadas no contexto do funk carioca do Bonde do Tigrão, também permitirem a diminuição da dignidade humana das mulheres ou mesmo ofensas a essa parcela da população, foi minimizado e colocado em segundo plano, frente à necessidade de se manter aceso o debate e não se apequenar o exercício do direito à liberdade de expressão.

Ou seja, o debate deve ser mantido, ainda que as pessoas se sintam ofendidas, pois a liberdade de expressão é mais valiosa para a sociedade, do que os sentimentos inerentes à dignidade da parcela atingida pelo discurso aviltante. Essa tem sido costumeiramente, a visão abraçada por aqueles que se filiam, de forma acrítica e extremada, às concepções liberais da liberdade de expressão como direito absoluto, com fundamento em discutíveis interpretações das obras de John Stuart Mill e Ronald Dworkin, entre outros.

Essa visão da questão, sob a ótica da preservação de um quase ilimitado direito de liberdade de expressão, traz em si embutida a perspectiva dos setores dominantes da sociedade.

De fato, a tolerância quase ilimitada à disseminação de conteúdos de ofensa, desvalia e diminuição de grupos ditos minoritários, desconsidera completamente a subjetividade daqueles que se sentem ofendidos.

 

A tão desejada “neutralidade” do Estado, traduzida numa omissão quase completa em face da escalada de disseminação de discursos de ódio, potencializada pelo uso das redes sociais, é concebida a partir da perspectiva daquele ser ideal, o ser humano idealizado – sem gênero, sem cor, sem etnia, sem deficiência, sem orientação sexual “desviante” do padrão heteronormativo.

Ao falar sobre a produção de discursos de ódio no campo do humor e das piadas racistas e sexistas, Djamila Ribeiro questiona: “por que se tem a compreensão com quem está oprimindo e não com quem está sendo oprimido?”[2]

Contudo, no debate que se presenciou na CCJ, no fatídico dia 3 de abril, os usos das expressões “tigrão” e “tchutchuca”, paradoxalmente, foram suficientes para questionar os limites da liberdade de expressão de um parlamentar, que conta, inclusive, com a garantia da imunidade, submetida que foi a fortes questionamentos, inclusive sob as tintas do decoro. O fato foi suficiente para que a sessão fosse encerrada e nos dias que se seguiram, o ministro foi “desagravado” nas redes sociais.

Como já dito, as expressões “tchutchuca” e “tigrão”, utilizadas pelo deputado Zeca Dirceu, no contexto em que proferidas, veiculam conteúdo sexista, não há dúvidas. Mas, qual a razão de tanto escândalo quando são dirigidas a um ministro e não quando tal linguajar, turbinado com apelos explicítos a atos de agressão física, são utilizadas no contexto de banalização da violência contra as mulheres? Afinal, não devemos preservar a liberdade de expressão e o mercado das idéias a qualquer preço, custe o que custar?

Entretanto, apesar da relevância do debate sobre a seguridade social na vida de milhões de brasileiros e brasileiras, a utilização da infortunada expressão “tchutchuca” foi suficiente para encerrá-lo, naquela noite.

Por alguma razão, para o ministro foi insuportavelmente ofensivo ser associado à figura da “tchutchuca”, com sua carga simbólica.

É certo que todo o debate foi longo e duro, como já se esperava. Mas, não deixa de ser surpreendente como um renomado economista, fundador de um Banco e de um ‘think thank’ do pensamento econômico liberal, um homem acostumado com os reveses e estratégias dos mercados financeiros, que demandam grandes doses de sangue frio e controle emocional, tenha reagido de forma tão inusitada ao ser designado pela palavra em questão.

Guardadas as devidas proporções e circunstâncias, o fato evoca o episódio da nomeação do juiz Brett Kavanaugh à Suprema Corte dos Estados Unidos. Kavanaugh, um juiz com “trajetória na magistratura marcada pelo conservadorismo de linha dura”, seguidor das concepções mais alargadas do direito à liberdade de expressão defendidas pelo Justice Scalia, ao ser confrontado com denúncias de atos de assédio sexual supostamente praticados durante sua formação educacional em Yale, não suportou a emoção e chorou várias vezes, durante sua sabatina no Senado[3].

De fato, no país da Primeira Emenda, o ilimitado mercado das idéias pode levar até mesmo um conservador a fortes emoções. Imagine se, ao invés de duas acusações isoladas de assédio sexual, durante seu processo de nomeação à Suprema Corte, o juiz Kavanaugh fosse alvo das repetidas, cotidianas e diárias agressões e microagressões[4] fundadas em características identitárias fundadas em gênero, raça, etnia, orientação sexual, entre outras dirigidas aos integrantes de grupos discriminados? A expressão bíblica do “vale de lágrimas” talvez pudesse ser utilizada em sentido literal.

Voltando ao episódio da CCJ, o que aconteceria, então, se o ministro – além de ser associado a padrões de fragilidade inerentes às concepções estereotipadas da feminilidade – fosse ainda alvo de incitações no estilo de “só um tapinha” ou mesmo “tapa na cara”, tal como ocorre com as mulheres nas demais letras do “Bonde do Tigrão” aludidas no debate judicial?

Em nome de uma distorcida concepção do direito à liberdade de expressão, segundo visões ditas liberais, exige-se que minorias e mulheres “tolerem” e submetam-se propagandas, piadas e músicas ofensivas, com conteúdos que banalizam, naturalizam tapas e tapinhas, ou mesmo as tratem como objetificadas “tchutchucas”, tudo em nome do mercado das ideias e do amor a um abstrato debate sobre a violência de gênero, ainda que desempenhado em bases desrespeitosas e ofensivas.

Já os protagonistas das propostas de mudança dos rumos da previdência social, diferentemente das mulheres e outras minorias, parecem nada ter de suportar.

Tigrões e tchutchucas? – nem pensar! Debate encerrado!


[1] Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Embargos Infringentes 0001233-21.2003.4.04.7100, 2ª Seção, Relator para Acórdão Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle, D.E. 30/10/2015.
[2] RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das letras, 2018, ebook.
[3] https://www.bbc.com/news/av/world-us-canada-45673888/brett-kavanaugh-i-am-innocent-of-this-charge, Acesso em 18/04/2019.
[4] Segundo Derald Wing Sue, em sua obra “Microaggressions in every day life. Race, gender and sexual orientation”, o termo “microagressões raciais” foi utilizado pela primeira vez por Chester Pierce, em 1970, para referir-se às cotidianas, sutis e frequentemente automáticas diminuições e insultos dirigidos contra os negros americanos. Atualmente, o termo tem sido utilizado para referir-se a expressões de conteúdo e dinâmica similares, dirigidas contra quaisquer grupos marginalizados.

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