Gilead é aqui

Cena de trabalhadoras ajoelhadas na Paraíba sob ordem do empregador ficou em minha mente nos últimos dias

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Quem assistiu à premiada série O conto de Aia, da empresa de streaming Hulu, baseada no livro homônimo de Margaret Atwood, deparou-se com um mundo distópico, onde a personagem principal, June, passa a viver em Gilead, após a transformação dos EUA em um estado teocrático patriarcal opressor, em que a mulheres são submetidas às mais humilhantes e impensáveis atrocidades.

O mundo de Gilead que, inicialmente, pareceu-me tão irreal e distante, foi se aproximando de meu cotidiano real de uma forma tão avassaladora e contundente que chegou a me assustar.

Isto porque ainda não havia me deparado com o recente acontecimento ocorrido em Campina Grande, na Paraíba, e retratado nessa incrível imagem. A crueza e a dureza dessas imagens ficaram cravadas em minha cabeça por vários dias, revolvendo-me por inteiro, tamanha a sua violência e arrebatadora realidade.

O mundo de Gilead havia entrado definitivamente na vida real.

Não que ainda não houvesse circulado em nosso cotidiano anteriormente. Há quase dois anos temos sido quase que diariamente bombardeados com episódios distópicos, que vão desde rodopios desvairados com a bandeira nacional, passando por goiabeiras divinizadas, as distinções de gênero baseadas nas cores rosa e azul, refutação explícita da ciência e da razão, terraplanismo, chegando ao cume com a divulgação, em escala internacional e em caráter educativo e preventivo, das incríveis cenas do “golden shower”. Foi um aprendizado.

Mas o episódio da Paraíba me pegou.


Ver aqueles trabalhadores ajoelhados, com as mãos em posição de oração, aglomerados em plena pandemia sanitária, pedindo proteção divina contra o vírus devastador e solicitando a reabertura de seus postos de trabalho, tudo pareceu-me uma cena perfeitamente plausível à série televisiva.

Tomei conhecimento, posteriormente, que as pessoas ali ajoelhadas assim se encontravam a mando do empregador, porque este estava insatisfeito com as perdas econômicas decorrentes do fechamento do comercio, efeito da quarentena. Para mim, foi o golpe final.

Gilead é aqui.

Em Direito do Trabalho temos um conceito- chave que delimita os pilares da relação trabalhista: o poder diretivo do empregador, ao qual se contrapõe o poder de resistência do empregado. Ambos tentariam se equilibrar para garantir um mínimo de civilidade às relações contratuais trabalhistas. Mas…. para onde teria ido o poder de resistência do empregado? A foto estampada nos jornais nos dava um soco na boca do estômago. Uma bofetada.

 

Lembrei-me também do meu tempo de juventude, quando li “História da Riqueza do Homem” , de Leo Huberman, onde o autor descrevia a situação penosa dos trabalhares ingleses do Século XIX. Ali conheci, com estupefação, histórias de mulheres e crianças de 10 anos trabalhando em minas insalubres de carvão na Inglaterra e trabalhadores submetendo-se a jornadas de 15 ou 16 horas de trabalho. A conquista da civilidade , com a edição das primeiras leis trabalhistas, foi decisiva para estabelecer limites ao capitalismo, ao lucro e à vontade dos empregadores. Anos e mais anos de luta e negociações para atingirmos um patamar mínimo e civilizatório no campo das relações trabalhistas. Tudo em vão. A foto retratou, com veemência, a decadência de todo esse edifício que foi construído ao longo de dois séculos e que vem ruindo, dia a dia.

O livro de Leo Huberman marcou-me pela indignação. Que essa foto marque você também.

Gilead não precisa ser aqui.

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