Há dias que ando a me perguntar como alinhavar palavras que estejam livres o suficiente para representar os vários nós que, em devir, entrelaçam as mãos da coluna Sororidade em Pauta. O exercício me tem levado às águas e delas volto sempre abastecida.
Entre as idas e vindas, elementos da terra ocupam as minhas mãos. Seguro a terra na esperança de torná-la produtiva e, coletivamente, podermos celebrar a colheita dos nossos nós.
Na cata das sementes, algumas somos ameríndias, outras somos camponesas, muitas somos orixás, todas tornamo-nos mulheres a cada dia.
Nós.
Enquanto as águas permanecem presas em mim, para circularem no tempo de Oxum, filha de Yemanjá, abro cuidadosamente minhas mãos e disponho a terra seca aos pés das ameríndias alto-xinguanas.
É Yamurikumã[1]! A terra se abastece da energia daquelas mulheres. Yamurikumã é o momento que permite a elas ocupar o pátio da aldeia todas munidas dos instrumentos que apenas homens alto-xinguanos podem utilizar em épocas ordinárias. Elas celebram e cantam sobre a terra. Em seguida, mergulham na terra, de aldeia em aldeia, quebrando as estruturas ordinárias de gênero daquelas comunidades. Atravessam a terra. A terra, da qual me apropriei, mas que sempre foi delas. A terra que peguei, mas que guarda o sangue delas.
A cada Yamurikumã, elas preparam a terra que é delas, mas que ocupo em minhas mãos.
Sigo o fluxo e alcanço o tempo das águas.
Encontro Mulheres de Axé. Vejo que Oxum preparou o terreiro e os nós de axé irrigam nossos caminhos: caminhos partidos de África (A). A cada terreiro, Áfricas. Juntas (J) (re)partidas. Sinto os lamentos da Diáspora (D) e eles são indispensáveis à fertilidade da terra que trago nas mãos.
“(…) aprendemos com as nossas Abás (anciãs) e assim continuaremos a manter a tradição e o respeito por todas e todos que estiveram aqui antes de nós, mantiveram a nossa tradição e fertilizaram a terra para que hoje pudéssemos semear com fartura esses belos relatos de vida (…) captar e interpretar as diversas emoções destas mulheres que carregam em seus rostos as expressões de vida plena. Seja de amor, de sorriso, de luta, de sofrimento, de mãe, mas, antes de qualquer coisa e para toda a existência neste plano, expressão de mulher, Mulher de Axé! (…) Estas mulheres e suas antecessoras representam a (re)construção familiar, cultural, econômica e social do povo negro, a continuidade das nossas tradições pós-tráfico negreiro, a certeza de que nenhum absurdo, por maior que seja, será capaz de apagar a dimensão material e imaterial que garante a nossa existência.” REZENDE, Marcos (Org.). Mulheres de Axé. Salvador: Kawo-Kabiyesile, 2013, p. 20-21.
Entristeço, mas sigo. Não conheço preparo, semeadura e colheita que não incluam o trabalho, a espera e o sofrimento.
Desloco-me às águas de Oxum, pois sua força vital inclui ruptura e rasgo. Rio filho do Mar. Oxum filha de Yemanjá.
Levada ao som dos batuques do cortejo, caminho sorora e sonora ao encontro das águas do rio, o filho do mar.
A terra em minhas mãos alcança a fertilidade de Oxum, filha de Yemanjá. Carrego-as comigo. São mãe e filha que, mesmo em terra deportada, firmaram sua prole em terreiros para preservarem os nós e garantirem os caminhos.
Realizo que o alinhavo das palavras produtivas está em construção.
Yamurikumã preparou o solo carregado entre meus dedos e com Oxum chegou água. Terra preparada e irrigada. Daí em diante as Margaridas passariam a trabalhar no meu eito, semeando essa terra que invadi com as mãos.
(…) Margaridas somos todas nós, que ainda não fazemos parte do que se chama de cidadania. Margarida é desabrochar pra alguma coisa. Você já prestou atenção numa margarida? Viu ela desabrochando? Então acho que todas nós somos margaridas quando estamos buscando os solos férteis, a cidadania (Ângela, coordenadora sindical regional Salgado/Pará, 2011) (…). De um modo geral, o termo ‘Margarida’ pode ser atribuído a toda mulher que se identifique com a luta das mulheres, seja a luta por direitos, por cidadania, seja a luta por espaços de poder.” AGUIAR, Vilenia Venancio Porto. Somos todas Margaridas: um estudo sobre o processo de constituição das mulheres do campo e da floresta como sujeito político. Campinas: UNICAMP/IFHC (tese de doutoramento), 2015, p. 254-255.
Eu invasora, de palavras invadida. Elas, Margaridas, deslocadas das várias frentes de trabalho dos muitos Brasis, mais uma vez trabalhariam em terras que não eram suas, terras que ocuparam minhas mãos. Marcharam, invadiram e semearam, garantindo a colheita dos nós.
Seguiram e me deixaram prestes a encontrar os muitos nós que habitavam em mim a cada vez que habito a Sororidade em Pauta. Encontrá-los me ansiava, pois, a partir desse encontro, esperava não só escrever, mas reconhecer e abraçar os nós fora de mim.
E o tempo fez a colheita.
No mês de Oxum, no ano de 2019, reuniu-se um bom punhado de nós.
Éramos xinguanas ameríndias, filhas de orixás, margaridas camponesas. Partidas de muitas saídas, projetávamos diferentes chegadas e estávamos ali representadas num bom bocado de mulheres consororizadas.
Foi lançada a obra coletiva: Sororidade em Pauta.
Link para o livro Sororidade em Pauta (Editora Letramento)
A esperança equilibrista tomou seu assento. Estava ao lado de todas nós. Dentro de cada nó, sentavam-se Oxum e sua mãe, Xinguanas e Margaridas. Lotação esgotada. Fantasmas que por vezes aparecem entre nós e o papel tiveram dificuldade em encontrar lugares vagos[2].
Nas falas daquele belo número de nós, um elo comum: mulheres para democracia, em referência à Associação Juízes para Democracia (AJD), a partir de onde começaram a se entrelaçar as primeiras nós e por onde nossos caminhos seguem se bifurcando e se cruzando, dando conta dos nós que habitamos. A AJD, sem dúvida, habita em nós, também em construção dinâmica de nós e, por isso mesmo, sendo estrela destacada à qual orbitamos…
Na escrita dos nós, uma construção iniciada do lugar de cada nó, muitas mulheres projetadas em nós e os vários caminhos que trilhamos e trilharemos.
É sabido que a caminhada não é traçada sem bifurcações, sem paralelas, sem desvios e sem atalhos. Mas a diversidade das ameríndias, das orixás, das camponesas, de todas as mulheres que habitam em nós, garante, sem dúvida, que a caminhada é sem fronteiras.
Semeada a terra que ocupou minhas mãos com as sementes de todas nós, de perto ou de longe, não tenho dúvida, seguirei irmanada e imantada aos nós da coluna, vértebras do coletivo Sororidade em Pauta.
Somos nós livres, inclusive para seguirmos caminhadas distintas, mas, ainda assim, não nos é dada a escolha de partir sem levar ou de ficar sem reter nós de quem partiu.
Nós ausentes estarão sempre presentes. Dentre nós, Liéje Aparecida de Souza Gouvêia presente!
Nós de terras invadidas, de Áfricas partidas, de florestas dizimadas, de camponesas aJuntadas por Diásporas vividas.
Nós, palavras colhidas.
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