Justiça
A liberdade de expressão e a voz de Valdete Severo
CNJ precisa explicar porque, em meio a uma pandemia com mais de 100 mil mortos, dedica seu tempo a Valdete Severo, brilhante juíza pensadora


Em 5 de outubro de 1988, o discurso histórico de Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, promulgava a Constituição Federal de 1988 e a apresentava à nação. Interrompido por incontáveis aplausos do público, Ulysses deixou claro que o processo construtivo da norma fundamental não representava um projeto particular, mas sim um pacto popular em defesa da democracia:
“A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil”.
Assim, o discurso da promulgação, mais que mero formalismo, constitui importante sinalização dos rumos que a sociedade decidiu tomar após o período de exceção que perdurou entre 1964 e 1985. É bem por isso, por representar a soberana vontade popular na inauguração do Estado Democrático de Direito Brasileiro, que Ulysses assevera que a Constituição, em que pese esteja sujeita à crítica ou divergência, jamais poderá ser descumprida ou afrontada: “traidor da Constituição é traidor da Pátria”.
Dentre as marcas indeléveis do longo período de autoritarismo experimentado pelo país, como as mortes e desaparecimentos que seguem sem resposta (e impunes) até a atualidade, a censura a determinadas produções artísticas, culturais e jornalísticas é bem retratada pela História e pelas vítimas. A violência e a repressão sofridas por aqueles tachados como “inimigos do regime” é exposta em diversas obras e documentos, restando clara a dose de moralismo e subjetividade que permeava a análise de toda a forma de comunicação no país à época.
Em linhas gerais, era considerada “subversiva” e, portanto, passível de eliminação, qualquer ideia ou proposta que se mostrasse contrária ou crítica ao regime vigente, ao cotidiano nacional ou às tradições, sempre segundo os padrões autoritários dos militares incumbidos desse controle. Como consequência, diversas pessoas foram perseguidas e tiveram a voz calada, muitas delas permanentemente, vítimas da forte vigilância do pensamento contra-hegemônico.
A Constituição Federal não se propõe a apagar tal passado, mesmo porque, como disse Burke, “o povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”. Em verdade, a promulgação de 1988, reconhecendo os erros pretéritos e a necessidade de evolução, abre espaço para uma promessa, um comprometimento popular em torno da construção de uma democracia forte e plural, na qual todos e todas sejam ouvidos e respeitados em suas opiniões e visões de mundo (desde que, obviamente, não camuflem discursos de ódio).
Como resultado desse pacto, vêm previstas, no catálogo de direitos fundamentais dispostos no artigo 5º do texto constitucional, incisos IV e IX, a liberdade de pensamento e de expressão, proibindo-se expressamente a censura. Trata-se de texto imutável e que protege, sob o manto da cláusula pétrea, o pensamento, a produção intelectual, artística, científica e de comunicação de qualquer tentativa de cerceamento ou, ainda, da necessidade de licença. A única ressalva existente e prevista no corpo constitucional é a possibilidade de ofensa à intimidade, à vida privada, à honra, e à imagem das pessoas, hipóteses em que resta assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (inciso X).
Todavia, é preciso que se ressalte que, ainda que o exercício de tais direitos não signifique carta branca para ofensa a direitos fundamentais alheios, a garantia da liberdade de expressão e de pensamento não pode ser submetida a qualquer condicionamento ou censura prévia. Em voto proferido por ocasião do histórico julgamento da ADPF 130/DF, que revogou a lei de imprensa, o Ministro Ayres Britto argumentou nesse sentido, esclarecendo que “Não há como garantir a livre manifestação do pensamento, tanto quanto o direito de expressão lato sensu (…), senão em plenitude”.
Após essa breve introdução, é necessário que se alerte que, no seio de uma sociedade que se diz democrática e que tem consciência de seu passado, não há espaço para tutela do pensamento, sendo seu cerceamento um caminho perigoso rumo ao autoritarismo do qual procuramos nos desvencilhar em 1988.
A construção da sociedade livre, justa e solidária almejada pelo constituinte perpassa necessariamente pela emancipação humana e, assim, pelo respeito absoluto à liberdade de opinião, de crítica e de criação, pela livre circulação de ideias antagônicas (desde que não fundadas em discurso de ódio, como já dito) e, principalmente, pelo reconhecimento da legitimidade das cobranças de cidadãos às autoridades públicas, as quais se encontram em “permanente vigília da cidadania” (ADFF 130/DF).
Tais conclusões não mudam quando falamos sobre os integrantes do Poder Judiciário. Assim como são passíveis de críticas no desempenho de suas funções, já que juízes e juízas não pertencem a uma casta especial em relação aos demais indivíduos e agentes públicos, magistrados tampouco perdem, por outro lado, sua condição de cidadãos quando assumem o cargo. Qualquer restrição à sua manifestação de pensamento somente se revela aceitável quando implique em ofensa à imparcialidade.
Fora de sua atuação jurisdicional, mostra-se intolerável toda tentativa de silenciamento que pretenda aniquilar a força de seu pensamento crítico.
Porém, preocupa ainda mais quando, em tempos de séria crise sanitária, humanitária e política, os magistrados chamados à mordaça sejam justamente aqueles notoriamente comprometidos com a democracia e os direitos humanos.
Denunciamos, aqui, a clara violação seletiva aos direitos e garantias fundamentais de juízes e juízas que se posicionam de forma contra-hegemônica no debate público e que, por não representarem os anseios de uma sociedade claramente desviada dos desígnios dispostos na Constituição Federal, são perseguidos e assediados por órgãos superiores.
No último dia 22 de julho de 2020, a mídia divulgou a notícia de que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio de seu Corregedor Nacional, Ministro Humberto Martins, instaurou pedido de providências para que a Juíza do Trabalho Valdete Souto Severo, do TRT 4, preste informações a respeito de artigo publicado em sítio eletrônico, intitulado “Por que é possível falar em política genocida no Brasil em 2020″. Dentre os trechos submetidos à exigência de explicação, consta a afirmação, por parte da magistrada, de que
“(…) Eis porque é possível falar de uma política genocida no Brasil hoje. O governo segue, em meio à pandemia, não apenas editando regras que concretamente pioram a vida das pessoas, impedindo-as, em alguns casos, de continuar vivendo, como também deliberadamente deixando de aplicar recursos de que dispõe, no combate à pandemia”.
Quase 90 mil pessoas morreram até o momento em razão da pandemia do novo coronavírus. Vivemos, como dito, um momento de grave crise sanitária, humanitária e política, sendo absolutamente indispensável ao regime democrático o debate público de ideias e visões de mundo, o que inclui a crítica a programas de governo que têm nos colocado na posição de segundo país do mundo com maior número de casos e mortes na pandemia.
Ora! Se os cidadãos não têm esse direito, quem mais o terá? Se todo poder emana do povo, quem mais, a não ser o cidadão, tem legitimidade para questionar e exigir posições e providências?
Foto: Gil Ferreira / Agência CNJ
A própria Resolução 305/2019 do Conselho Nacional de Justiça, em que pese de duvidosa constitucionalidade, ao estabelecer parâmetros para o uso das redes sociais pelos membros do Poder Judiciário, ressalva, em seu artigo 4º, §1º, que são livres as manifestações, públicas ou privadas, dirigidas a projetos e programas de governo, processos legislativos ou outras questões de interesse público.
Por isso, perturba a sistemática tentativa de intimidação e de tutela do pensamento por parte de órgãos que deveriam estar voltados às reais afrontas ao Poder Judiciário e ao exercício da jurisdição. Preocupa que, mais de 30 anos após a promulgação da Constituição Cidadã, testemunhemos tamanho desapreço por seu texto e interpretações que escancaram a mancha autoritária que ainda nos acompanha, distanciando-nos cada vez daquilo que um dia sonhou o constituinte e do pacto popular em torno da democracia. Repudiamos toda e qualquer afronta à Constituição Federal porque repudiamos a ditadura! Como disse Ulysses em seu discurso quando da promulgação da Carta, “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”.
Valdete não é “apenas” magistrada. É intelectual, pesquisadora, escritora e professora. Valdete é mulher e cidadã. O Estado Democrático de Direito respira com a ajuda de aparelhos. A voz de Valdete Souto é respiro necessário em meio ao ar rarefeito em direitos e garantias fundamentais que paira sobre o país.
Em 5 de outubro de 1988, o discurso histórico de Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, promulgava a Constituição Federal de 1988 e a apresentava à nação. Interrompido por incontáveis aplausos do público, Ulysses deixou claro que o processo construtivo da norma fundamental não representava um projeto particular, mas sim um pacto popular em defesa da democracia:
“A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil”.
Assim, o discurso da promulgação, mais que mero formalismo, constitui importante sinalização dos rumos que a sociedade decidiu tomar após o período de exceção que perdurou entre 1964 e 1985. É bem por isso, por representar a soberana vontade popular na inauguração do Estado Democrático de Direito Brasileiro, que Ulysses assevera que a Constituição, em que pese esteja sujeita à crítica ou divergência, jamais poderá ser descumprida ou afrontada: “traidor da Constituição é traidor da Pátria”.
Dentre as marcas indeléveis do longo período de autoritarismo experimentado pelo país, como as mortes e desaparecimentos que seguem sem resposta (e impunes) até a atualidade, a censura a determinadas produções artísticas, culturais e jornalísticas é bem retratada pela História e pelas vítimas. A violência e a repressão sofridas por aqueles tachados como “inimigos do regime” é exposta em diversas obras e documentos, restando clara a dose de moralismo e subjetividade que permeava a análise de toda a forma de comunicação no país à época.
Em linhas gerais, era considerada “subversiva” e, portanto, passível de eliminação, qualquer ideia ou proposta que se mostrasse contrária ou crítica ao regime vigente, ao cotidiano nacional ou às tradições, sempre segundo os padrões autoritários dos militares incumbidos desse controle. Como consequência, diversas pessoas foram perseguidas e tiveram a voz calada, muitas delas permanentemente, vítimas da forte vigilância do pensamento contra-hegemônico.
A Constituição Federal não se propõe a apagar tal passado, mesmo porque, como disse Burke, “o povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la”. Em verdade, a promulgação de 1988, reconhecendo os erros pretéritos e a necessidade de evolução, abre espaço para uma promessa, um comprometimento popular em torno da construção de uma democracia forte e plural, na qual todos e todas sejam ouvidos e respeitados em suas opiniões e visões de mundo (desde que, obviamente, não camuflem discursos de ódio).
Como resultado desse pacto, vêm previstas, no catálogo de direitos fundamentais dispostos no artigo 5º do texto constitucional, incisos IV e IX, a liberdade de pensamento e de expressão, proibindo-se expressamente a censura. Trata-se de texto imutável e que protege, sob o manto da cláusula pétrea, o pensamento, a produção intelectual, artística, científica e de comunicação de qualquer tentativa de cerceamento ou, ainda, da necessidade de licença. A única ressalva existente e prevista no corpo constitucional é a possibilidade de ofensa à intimidade, à vida privada, à honra, e à imagem das pessoas, hipóteses em que resta assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (inciso X).
Todavia, é preciso que se ressalte que, ainda que o exercício de tais direitos não signifique carta branca para ofensa a direitos fundamentais alheios, a garantia da liberdade de expressão e de pensamento não pode ser submetida a qualquer condicionamento ou censura prévia. Em voto proferido por ocasião do histórico julgamento da ADPF 130/DF, que revogou a lei de imprensa, o Ministro Ayres Britto argumentou nesse sentido, esclarecendo que “Não há como garantir a livre manifestação do pensamento, tanto quanto o direito de expressão lato sensu (…), senão em plenitude”.
Após essa breve introdução, é necessário que se alerte que, no seio de uma sociedade que se diz democrática e que tem consciência de seu passado, não há espaço para tutela do pensamento, sendo seu cerceamento um caminho perigoso rumo ao autoritarismo do qual procuramos nos desvencilhar em 1988.
A construção da sociedade livre, justa e solidária almejada pelo constituinte perpassa necessariamente pela emancipação humana e, assim, pelo respeito absoluto à liberdade de opinião, de crítica e de criação, pela livre circulação de ideias antagônicas (desde que não fundadas em discurso de ódio, como já dito) e, principalmente, pelo reconhecimento da legitimidade das cobranças de cidadãos às autoridades públicas, as quais se encontram em “permanente vigília da cidadania” (ADFF 130/DF).
Tais conclusões não mudam quando falamos sobre os integrantes do Poder Judiciário. Assim como são passíveis de críticas no desempenho de suas funções, já que juízes e juízas não pertencem a uma casta especial em relação aos demais indivíduos e agentes públicos, magistrados tampouco perdem, por outro lado, sua condição de cidadãos quando assumem o cargo. Qualquer restrição à sua manifestação de pensamento somente se revela aceitável quando implique em ofensa à imparcialidade.
Fora de sua atuação jurisdicional, mostra-se intolerável toda tentativa de silenciamento que pretenda aniquilar a força de seu pensamento crítico.
Porém, preocupa ainda mais quando, em tempos de séria crise sanitária, humanitária e política, os magistrados chamados à mordaça sejam justamente aqueles notoriamente comprometidos com a democracia e os direitos humanos.
Denunciamos, aqui, a clara violação seletiva aos direitos e garantias fundamentais de juízes e juízas que se posicionam de forma contra-hegemônica no debate público e que, por não representarem os anseios de uma sociedade claramente desviada dos desígnios dispostos na Constituição Federal, são perseguidos e assediados por órgãos superiores.
No último dia 22 de julho de 2020, a mídia divulgou a notícia de que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio de seu Corregedor Nacional, Ministro Humberto Martins, instaurou pedido de providências para que a Juíza do Trabalho Valdete Souto Severo, do TRT 4, preste informações a respeito de artigo publicado em sítio eletrônico, intitulado “Por que é possível falar em política genocida no Brasil em 2020″. Dentre os trechos submetidos à exigência de explicação, consta a afirmação, por parte da magistrada, de que
“(…) Eis porque é possível falar de uma política genocida no Brasil hoje. O governo segue, em meio à pandemia, não apenas editando regras que concretamente pioram a vida das pessoas, impedindo-as, em alguns casos, de continuar vivendo, como também deliberadamente deixando de aplicar recursos de que dispõe, no combate à pandemia”.
Quase 90 mil pessoas morreram até o momento em razão da pandemia do novo coronavírus. Vivemos, como dito, um momento de grave crise sanitária, humanitária e política, sendo absolutamente indispensável ao regime democrático o debate público de ideias e visões de mundo, o que inclui a crítica a programas de governo que têm nos colocado na posição de segundo país do mundo com maior número de casos e mortes na pandemia.
Ora! Se os cidadãos não têm esse direito, quem mais o terá? Se todo poder emana do povo, quem mais, a não ser o cidadão, tem legitimidade para questionar e exigir posições e providências?
Foto: Gil Ferreira / Agência CNJ
A própria Resolução 305/2019 do Conselho Nacional de Justiça, em que pese de duvidosa constitucionalidade, ao estabelecer parâmetros para o uso das redes sociais pelos membros do Poder Judiciário, ressalva, em seu artigo 4º, §1º, que são livres as manifestações, públicas ou privadas, dirigidas a projetos e programas de governo, processos legislativos ou outras questões de interesse público.
Por isso, perturba a sistemática tentativa de intimidação e de tutela do pensamento por parte de órgãos que deveriam estar voltados às reais afrontas ao Poder Judiciário e ao exercício da jurisdição. Preocupa que, mais de 30 anos após a promulgação da Constituição Cidadã, testemunhemos tamanho desapreço por seu texto e interpretações que escancaram a mancha autoritária que ainda nos acompanha, distanciando-nos cada vez daquilo que um dia sonhou o constituinte e do pacto popular em torno da democracia. Repudiamos toda e qualquer afronta à Constituição Federal porque repudiamos a ditadura! Como disse Ulysses em seu discurso quando da promulgação da Carta, “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”.
Valdete não é “apenas” magistrada. É intelectual, pesquisadora, escritora e professora. Valdete é mulher e cidadã. O Estado Democrático de Direito respira com a ajuda de aparelhos. A voz de Valdete Souto é respiro necessário em meio ao ar rarefeito em direitos e garantias fundamentais que paira sobre o país.
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