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Sobre crentes, protestantes, evangélicos e Rubem Alves

O teólogo, psicanalista e educador segue em pauta na coluna pela ótica da oposição evangélico x protestante

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Na coluna passada, escrevi que o teólogo, psicanalista e educador Rubem Alves, perseguido no passado e no presente, por seu pensamento e livros publicados, conservou suas raízes evangélicas até a morte. Isto gerou incômodo em alguns leitores que alegaram que houve rompimento dele com o mundo evangélico, cenário das perseguições sofridas, objeto de sua teologia crítica. Nesse sentido, dizem, Rubem Alves seria mesmo “protestante”, um termo mais apropriado diante do que está hegemonicamente exposto no atual cenário religioso, cultural e político.

Não pude deixar de ser instigada a pensar a oposição “evangélico” x “protestante”. Afinal, ter um nome é ter identidade, é carregar uma marca, uma imagem. O termo “protestante”, raramente foi utilizado no Brasil para identificar os não-católicos e não-ortodoxos. Ele acabou sendo mais empregado na academia, por historiadores e estudiosos da Teologia e da Religião.

Para os missionários estadunidenses que trouxeram a fé protestante para o Brasil no século XIX, era importante adotar uma identificação que representasse a nova experiência vivida no país e que demarcasse a negação do Catolicismo oficial e hegemônico. Para isso foi escolhida a expressão “crente em nosso Senhor Jesus Cristo”, ou, numa abreviação, “crente”. Este nome demarcava o processo de conversão, que era a pregação central da mensagem missionária: passava-se da incredulidade e desobediência a uma nova vida de crença e obediência. Os convertidos passavam assim a se autoidentificar como “crentes”.

O renomado cientista da religião Antônio Gouvêa Mendonça indicava em seus estudos que, de fora, o nome “crente” era muitas vezes carregado de preconceito e até de depreciação, entretanto, de dentro, era cheio de brio e de responsabilidade. Os crentes, embora compondo um grupo sociologicamente marginal, eram respeitados pelo seu amor à paz, à ordem e ao trabalho. Assim, o nome de crente trazia consigo um compromisso transparente de ser diferente perante a sociedade.

No entanto, os missionários também tinham sua identidade, sua própria forma de se autoidentificarem: eles eram evangelicals (evangélicos), os adeptos do conservadorismo protestante, que desejavam afirmar a sua fidelidade ao Evangelho e não à Ciência ou à razão humana, com as quais protestantes progressistas se afinavam. A corrente dos evangelicals foi a promotora do movimento das Alianças Evangélicas em todo o mundo. Eram associações caracterizadas pela teologia dos movimentos pietistas, fundamentalistas e avivalistas e pela busca da união de todos os protestantes a fim de formar uma frente única de combate ao Catolicismo – interpretado como único empecilho ao avanço missionário iniciado no final do século XVIII.

 

A influência deste movimento alcançou o Brasil expressivamente no início do século XX, com o avanço dos projetos missionários protestantes em todo o mundo, patrocinados pelas Alianças Evangélicas. Muitas denominações brasileiras acrescentaram aos seus nomes a expressão “evangélica” e o termo “crente”, que já havia ganho forma pejorativa, foi paulatinamente substituído por “evangélico/a” para designar os fiéis e as igrejas não-católicas e não-ortodoxas.

Com o crescimento numérico e geográfico deste segmento, e as tantas transformações vividas, em especial, com a chegada dos pentecostais, no século XX, o termo “evangélico” foi cada vez mais consolidado como a marca do segmento. A popularização dos grupos e igrejas por meio da ocupação das mídias tradicionais e digitais e a construção do mercado gospel amplificaram isto. Fato é que, fora da academia, ninguém usa o termo protestante para identificar este segmento.

O teólogo luterano alemão do século XX Paul Tillich reconhecia que a dimensão profética, contestatória, protestante, é própria do cristianismo, à luz da postura do Cristo. Para ele, a Reforma significou a encarnação deste “princípio protestante”, uma volta às origens do ser cristão. Ampla parcela dos grupos evangélicos brasileiros se distanciou deste princípio, identificando-se mais como “os que têm o verdadeiro evangelho” do que como “profetas que contestam quem quer controlar Deus”.

Por isso, a aliança com poderes políticos estabelecidos com base em injustiça, em violência e negação de direitos ou a simples omissão marca a trajetória dos evangélicos no Brasil. A arrogância da posse da verdade religiosa também sepultou a identidade dos evangélicos relacionada ao amor à paz e à tolerância.

No entanto, ainda que minoritária e não colocada em evidência, uma parcela importante de evangélicos teima em mostrar que as sementes do princípio protestante de viver a fé na história foram germinadas no Brasil desde a chegada dos missionários. Há evangélicos que insistem em cultuar, em comunidade, o Deus da graça que não faz acepção de pessoas. Há evangélicos que pagaram e pagam com suas vidas o compromisso com a justiça, povoando as prisões das ditaduras militares, resistindo às torturas, enfrentando a morte ou o exílio e a perseguição. Há evangélicos ativistas em várias ações de solidariedade com minorias sociais, dependentes químicos, presos, vítimas de violência.

Estes grupos e igrejas espalhados pelo Brasil atuam na recriação da identidade protestante tão fragilizada nestas terras. Estes evangélicos insistem em mostrar que o nome que foi estabelecido para o seu grupo, a marca que carregam, não tem como ser mudado mas pode ser honrado, como fizeram no passado, com suas ações, Rubem Alves, Erasmo Braga, Paulo Wright, Billy Gamon, João Dias de Araújo, Heleny Guariba, entre tantos/as outros/as. Não estão em evidência midiática nem ganharam cargos no governo federal mas seguem dando vida ao fascinante poder transformador das crises.

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