Psicodelicamente

Revista digital independente de jornalismo psicodélico, criada pelo jornalista Carlos Minuano

Psicodelicamente

EUA rejeitam uso terapêutico de MDMA. O que isso significa para o Brasil?

A Anvisa norte-americana pede novas pesquisas; especialistas criticam a decisão e prevêem queda nos investimentos científicos e de mercado

EUA rejeitam uso terapêutico de MDMA. O que isso significa para o Brasil?
EUA rejeitam uso terapêutico de MDMA. O que isso significa para o Brasil?
Casos de abuso sexual durante os ensaios clínicos e a dificuldade de manter o cegamento por placebo foram justificativas para a negativa (Divulgação/Maps)
Apoie Siga-nos no

Um duro golpe está abalando o campo psicodélico. Especialistas buscam entender o que está por trás do revés e o tamanho do estrago. No início deste mês, a FDA, responsável pela aprovação de medicamentos e vacinas nos Estados Unidos, recusou o pedido de licença feito pela empresa Lykos Therapeutics para a psicoterapia assistida por MDMA. A droga conhecida como ecstasy, proibida desde 1985 no país, seria utilizada no tratamento de transtorno de estresse pós-traumático, uma condição de saúde para a qual não surgiram novos tratamentos nos últimos 20 anos.

A agência, equivalente à brasileira Anvisa, alegou que a droga não pode ser aprovada com base nos dados atualmente disponíveis, e pediu estudos adicionais de segurança e eficácia – que podem levar anos e demandar grandes investimentos. A decisão decepciona cientistas e pacientes, que há décadas esperam pela liberação do uso médico dessas substâncias. Investidores também devem pôr as barbas de molho e o setor, que nos EUA surfava em cifras bilionárias, teme uma provável desaceleração. Mas e para o Brasil, o que isso significa?

“Foi um balde de água fria para todo o setor”, lamenta o empresário Marco Algorta, CEO da Beneva, a primeira rede de clínicas especializada em terapias com psicodélicos do Brasil. “As projeções econômicas das empresas estavam baseadas em um hipotético crescimento de valor após a aprovação do MDMA. Dificilmente haverá investimentos vindos do exterior para o Brasil nos próximos 18 meses.”

Casos de abuso sexual durante ensaios clínicos e a dificuldade de manter o cegamento por placebo foram justificativas para a negativa, conforme indicado em um parecer emitido no último mês de junho por um comitê de consultores da agência. O chamado padrão ouro da FDA exige que pacientes e pesquisadores não saibam quem tomou a droga e quem tomou a substância inativa, como uma maneira de reduzir a influência das expectativas. Em pesquisas psicodélicas, contudo, isso é praticamente impossível, pois, cerca de uma hora após a administração da droga, fica evidente quem tomou o que.

“Na minha opinião, nenhuma das razões é suficiente”, afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro. O pesquisador ressalta que há várias ocorrências de anestesistas da medicina comum que aplicam quantidades excessivas de sedativos nas vítimas para facilitar abusos. “No caso do MDMA, também existe uma vulnerabilidade, assim como em outras substâncias.”

Prevalece, no entendimento do FDA, uma postura bastante conservadora, que favorece a visão mais farmacêutica (Divulgação/Maps)

Ribeiro argumenta que a dificuldade de cegamento do placebo não deve ser vista como algo negativo. Pelo contrário, pois indica que, na dose adequada, o efeito é “real, concreto, forte, sensível e inegável.” A rejeição da FDA também levantou questionamentos sobre a psicoterapia assistida por psicodélicos incluída na proposta da empresa Lykos Therapeutics.

Para o neurocientista, a crítica extremamente deletéria que opõe medicina e psicologia ao apontar a integração psicoterapêutica da experiência como algo negativo. “É exatamente o contrário; para lidar com psicodélicos, é necessária terapia antes, durante e depois”. No entanto, Ribeiro presume que há outras razões para a agência americana ter negado o pedido.

O especialista avalia que prevaleceu uma postura bastante conservadora, que favorece a visão mais farmacêutica. “Querem que o MDMA seja aprovado como uma substância que a pessoa compra na farmácia, para uso sem assistência de ninguém? Isso não faz sentido; não seria responsável.”

“Me parece uma falcatrua, uma rasteira no jogo duro do capitalismo”, argumenta o neurocientista Sidarta Ribeiro. Para ele, a verdadeira razão por trás da decisão é comercial. “Foram anos de pesquisas da Maps (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), de arrecadação de fundos, de advocacy, trabalhando intensamente para mudar a percepção pública do MDMA, e agora que conseguiram, querem colocá-lo no final da fila, propondo jogar fora a psicoterapia e usar uma dose muito baixa da droga, quase indistinguível do placebo.”

Pesquisas revelaram dados promissores

A Lykos Therapeutics foi uma divisão comercial criada para direcionar as pesquisas da Maps, uma organização sem fins lucrativos fundada por Rick Doblin na década de 1980, e também para apresentar a proposta à FDA. Os ensaios clínicos que testaram o MDMA para tratar TEPT revelaram dados promissores. Em dois estudos de fase três, pacientes tratados com uma combinação entre experiência psicodélica e terapia apresentaram melhoras expressivas nos sintomas do transtorno.

Os resultados de um desses ensaios, publicados em 2023 na Nature Medicine, apontam evidências expressivas: 71% dos pacientes não atendiam mais aos critérios de diagnóstico para TEPT e quase metade foi considerada em remissão — ou seja, funcionalmente curada — 18 semanas após iniciar a terapia assistida por MDMA.  Atualmente, 13 milhões de americanos vivem com TEPT, segundo dados do Departamento de Assuntos de Veteranos dos EUA.

“O MDMA é uma substância extremamente poderosa para lidar com traumas, esse revés momentâneo não muda isso”, observa Ribeiro, que acredita em um futuro promissor para a utilização médica da droga, mas teme que a droga seja alvo de monopólio da indústria farmacêutica. “Falta saber quando, em qual modelo e qual empresa inicialmente irá se beneficiar”, observa o neurocientista. 

“Acho difícil deter a substância, porque ela é muito terapêutica, uma pessoa que está à beira do suicídio sem nenhuma perspectiva de vida, o que a psiquiatria tem a oferecer atualmente é basicamente sedação e contenção, o que não resolve nada, e se for involuntária gera mais problema ainda.”

Ele não vê grandes impactos para a pesquisa com MDMA no Brasil. “Como paralisar o que já está parado?”, indaga Ribeiro. O único ensaio clínico brasileiro com a substância foi minúsculo. Realizado em 2017, também para o tratamento de TEPT, teve a participação de apenas quatro pacientes.  

No caso de outras substâncias psicodélicas, o neurocientista acredita que estudos brasileiros continuarão avançando. Ele cita como exemplo as pesquisas do grupo dos pesquisadores Dráulio de Araújo e Fernanda Palhanos do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). 

“O grupo está caminhando para uma alternativa, eficaz, disponível, de baixo custo, algo que possa ser levado para o SUS”, destaca Ribeiro. Para ele, essa é uma discussão que precisa avançar no Brasil, como disponibilizar essas substâncias para a população que está sofrendo com diferentes transtornos. 

Startups psicodélicas atraíram US$ 1,2 bilhão desde 2020

“Vivemos uma grande transição na área, principalmente pela entrada de capital privado investindo nessa perspectiva da medicina psicodélica”, opina o físico e neurocientista Dráulio de Araújo, que lidera estudos pioneiros com DMT na UFRN. Uma mudança que, segundo ele, pode ser facilmente percebida em números. 

Araújo cita alguns dados impressionantes divulgados pelo fundador da Maps, Rick Doblin, na Conferência Interdisciplinar sobre Pesquisa Psicodélica (ICPR, na sigla em inglês), realizada em junho deste ano na Holanda. “Desde a criação da Maps em 1986 até 202o circulou dentro do mundo de investimentos em psicodélicos algo em torno de 350 milhões de dólares.”

Em 2020, houve um boom de investimentos em empresas psicodélicas, seguido por um ano de 2021 igualmente forte, que depois desacelerou significativamente em 2023, considerado um ano caótico, com investimentos baixíssimos. No entanto, o cenário voltou a melhorar na primeira metade de 2024.

Entre altos e baixos, startups psicodélicas atraíram US$ 1,2 bilhão em investimentos de capital de risco desde 2020 e atraíram o interesse de grandes grupos farmacêuticos, de acordo com a PitchBook, que acompanha o cenário de investimentos em startups nos Estados Unidos. O setor tem contado com o financiamento de patrocinadores bilionários, como Peter Thiel e Christian Angermayer.

O pesquisador destaca algumas iniciativas bem sucedidas, como a de Amanda Feilding, criadora da Beckley Foundation, que há mais de duas décadas apoia e financia projetos de ciência psicodélica e de reforma de políticas sobre drogas. Junto com o filho Cosmo Feilding Mellen, ela criou uma startup de capital privado, a Beckley PsyTech, que já captou mais de US$ 100 milhões.

Números de outras empresas também ajudam a dimensionar os contornos do setor. A Delix Therapeutics já recebeu US$ 118 milhões, a Compass Pathways, captou US$ 285 milhões, a GH Research obteve um montante de US$ 125 milhões, a Cybin amealhou US$ 163 milhões e, por fim, a Atai Life Sciences levantou US$ 522 milhões. 

Independente da decisão da FDA, esse volume de investimentos, na opinião de Araújo, representa uma sinalização importante sobre o futuro dos psicodélicos, indicando os rumos que o setor deverá tomar. Segundo ele, esses números do campo psicodélico expõem também uma face meio maluca do capitalismo, que não permite um entendimento claro sobre o valor real das coisas. “A Compass chegou a valer 1 bilhão de dólares sem vender um produto sequer.”

‘Ooportunidade para o Brasil’

A decisão negativa da FDA não abalou Araújo, que se mantém otimista. Ele observa um cenário diferente do que foi visto nas décadas de 1960 e 1970. “Hoje, o movimento está muito impulsionado pela ciência”. Segundo o pesquisador, as críticas atuais — como a de que alguns estudos não estão sendo feitos da maneira correta ou de que estão indo muito rápido — são cobranças típicas do meio científico.

Araújo acredita ainda em uma tendência positiva que pode surgir da recusa da agência norte-americana. “O dinheiro da especulação e de gente mal-intencionada deve começar a sair do mercado, deixando recursos mais sustentáveis, de investidores que compreendem o que são os psicodélicos e que estejam realmente interessados em fazer algo pela expansão do campo, além de apenas ganhar dinheiro.”

O empresário Algorta concorda com o pesquisador da UFRN e enxerga no momento atual uma importante oportunidade para o Brasil. “O colonialismo econômico não ocorrerá a curto prazo, mas isso não significa que o futuro dos psicodélicos acabou”. No entanto, o CEO da Beneva pondera que isso depende de investidores nacionais serem capazes de enxergar as possibilidades que se apresentam.

“Podemos criar um verdadeiro ecossistema brasileiro de psicodélicos, que não seja impulsionado por modismos ou especulação, e que saiba apoiar e cristalizar o papel protagonista que o Brasil já desempenha neste setor.”

Para a antropóloga Bia Labate, ainda existem muitos tabus sociais e preconceitos em relação aos psicodélicos, fundamentados em anos de dogmas religiosos, morais e culturais. “O resultado é um cenário político complexo para digerir, entender e navegar”, analisa a pesquisadora em um artigo publicado no site do Instituto Chacruna, ONG que fundou e dirige em São Francisco (EUA). 

“Embora essa decisão atrase em anos a integração dos psicodélicos aos protocolos de saúde convencionais, a ciência e as pesquisas realizadas até agora continuarão a influenciar o mundo”, avalia a antropóloga. 

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo