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Para enfrentar o medo destes tempos tenebrosos

O medo se tornou um sentimento frequente, em um Brasil desgovernado e sem projeto de país

Os únicos projetos em curso são o econômico, que só faz aumentar as desigualdades e a incerteza quanto à sobrevivência de muitos. (Foto: Marcos Corrêa/PR) Os únicos projetos em curso são o econômico, que só faz aumentar as desigualdades e a incerteza quanto à sobrevivência de muitos. (Foto: Marcos Corrêa/PR)
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Quem não ouve aqui e ali frases como: “estou com medo do que vem por aí!” ou “o Brasil está dando medo” ou ainda “nunca tive tanto medo como nestes tempos!”? Sim, o medo se tornou um sentimento frequente, em um Brasil desgovernado, sem projeto de país, sob permanente ameaça ao Estado de Direito e à democracia. Os únicos projetos em curso são o econômico, que só faz aumentar as desigualdades e a incerteza quanto à sobrevivência de muitos, e o ideológico, destrutivo de todas as conquistas sociais alcançadas depois da ditadura. Soma-se a estas desgraças o sofrimento com uma pandemia que, desde março, matou milhares e contaminou mais de milhão, oficialmente, e é tratada com descaso pelos mandantes, tornando as mortes um componente dos projetos destrutivos. Há ainda o aumento da violência policial nas periferias e do sofrimento das famílias com o tormento da dúvida se seus queridos voltarão para casa. Como se não bastasse, chega a notícia de que uma nuvem de gafanhotos (!) está a caminho do sul do Brasil.

O medo é uma ameaça, como cantam Lenine e Pedro Guerra na canção “Miedo”, pois cria um vazio e paralisa:

O medo é uma linha que separa o mundo
o medo é uma casa aonde ninguém vai
o medo é como um laço que se aperta em nós
o medo é uma força que não me deixa andar…
O medo é medonho, o medo domina, o medo é a medida da indecisão”

Do medo emergem desânimo, depressão, rendição. É com esta intenção que se instauram políticas como esta que vivemos no Brasil. Pelo medo, pela propagação de ameaças empossadas, de inimigos estabelecidos, instala-se pânicos morais, cria-se inanição e instaura-se salvadores da pátria, heróis, mitos, messias. Com isso, a velha corrupção (ideologicamente atribuída a alguns) virou a razão de todos os males; um tal Foro de São Paulo apareceu para ressuscitar o comunismo; a sofrida Venezuela tornou-se o “bicho papão” do “eu sou você amanhã”; “ideologia de gênero” dos movimentos feministas e LGBTI+ torna-se destruidora de uma idealização de família; o “marxismo cultural” está dominando adolescentes e jovens nas escolas e universidades; o coronavírus transformou-se num complô comunista contra o governo do Brasil.

E tome-se mensagens alarmistas de Whatsapp, postagens de Facebook e Twitter, pregações religiosas alardeando o domínio do mal avivando medos. “Medo estampado na cara ou escondido no porão, o medo circulando nas veias, ou em rota de colisão. O medo é do Deus ou do demo, é ordem ou é confusão” (Lenine e Pedro Guerra).

De acordo com a tradição cristã, tem medo quem não fé. Nesse sentido, o contrário do medo não é ter coragem, mas ter fé, pois é dela que vem toda a resistência. Assim foi com os cristãos das primeiras décadas depois de Jesus sob a política do Império Romano. O imperador era considerado um mito, o Senhor do Mundo, um deus, em um sistema que controlava a vida do povo e que explorava as pessoas pobres para manter o luxo da “gente de bem”.

Na contramão, os cristãos que tinham o Criador como Senhor, e se viam como irmãos e irmãs, colocavam seus bens em comum, diziam que todos eram iguais, condenavam os ricos que exploravam os trabalhadores, não apoiavam o sistema injusto do Império. As comunidades diziam: “Jesus é o Senhor e a nossa vida é cumprir a vontade dele!” mas, fora delas, quem dominava era o Imperador de Roma. Daí tanta perseguição a quem resistisse a esta ideologia. E a imposição do medo, fonte de paralisia e rendição!

Daí a palavra simbólica, profética, da carta do Apocalipse às igrejas em sofrimento (capítulo 2): “Não tenham medo do que você está prestes a sofrer. O Diabo lançará alguns de vocês na prisão para prová-los, e vocês sofrerão perseguição durante dez dias. Seja fiel até a morte, e eu lhe darei a coroa da vida”.

“Não tenham medo!” é expressão recorrente em várias narrativas e ensinamentos espalhados pela Bíblia, casada com a fidelidade a princípios que não se vendem.

Faz lembrar a resistência dos torturados nos porões da ditadura militar diante da tentação da delação imposta em sangue pelos diabólicos atores do regime. Assim cantam Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós:

Quando o muro separa, uma ponte une
e a vingança encara, o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
você vai na marra, ela um dia volta
E se a força é tua, ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte
olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí!

Uma força que vem como o sopro das palavras divinas nos ouvidos do profeta Daniel, quando estava no exílio (capítulo 10): “Deus o ama. Portanto, não fique com medo. Que a paz de Deus esteja com você. Anime-se! Tenha coragem!” Ou como aquelas que chegaram à Maria, adolescente da sofrida periferia (Lucas, capítulo 1): “Não tenha medo, Maria, Deus está feliz com você!

Por isso, é fundamental aprender do sofrimento e da resistência para viver o hoje, como canta Ivan Lins:

Desesperar jamais, aprendemos muito nesses anos.
Afinal de contas não tem cabimento
entregar o jogo no primeiro tempo
Nada de correr da raia, nada de morrer na praia
Nada! Nada! Nada de esquecer
No balanço de perdas e danos já tivemos muitos desenganos
já tivemos muito que chorar
Mas agora, acho que chegou a hora
de fazer valer o dito popular: desesperar jamais!

Nesta mesma trilha, as palavras de Gilberto Gil ressoam sempre: “andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá… Mesmo a quem não tem fé, a fé costuma acompanhar, pelo sim, pelo não…”. Inspiração divina, misteriosa, nestes tempos tenebrosos, como aprendi com uma aula sobre “Espiritualidade em Tempos de Pandemia” (Prof. Claudio Ribeiro, UFJF): “por isso uma força estranha [nos] leva a cantar, por isso esta força estranha no ar…” (Caetano Veloso).

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