Pantagruélicas
Ideias e memórias e de um jornalista apaixonado pelos vinhos e a gastronomia
Pantagruélicas
Um teste às cegas no Cambuci e o ‘cancelamento’ do vinho argentino
O desprezo ao malbec em certas rodas fala menos sobre o que está dentro da taça e mais sobre modismos passageiros


O convite chegou numa manhã de terça-feira. “Almoço na sexta-feira, pode?” A agenda estava livre. O amigo avisava que levaria todos os vinhos; cabia apenas fechar a lista de convidados. Nada de formalidades: seria apenas uma brincadeira entre amigos, dessas que misturam curiosidade e prazer. O restaurante escolhido ficava fora do eixo centro–zona sul–zona oeste: a Parrillita, na Avenida Lins de Vasconcelos, 988, no Cambuci. Bom preço, boas carnes, segundo o anfitrião.
Sentados à mesa, a pegadinha foi logo revelada: quatro vinhos tintos enrolados em papel-alumínio. Degustação às cegas, com direito a palpites antes da revelação. Seriam da mesma uva? De países diferentes? Safras distintas? As opiniões divergiam: dois rótulos pareciam vir do Novo Mundo, cheios de fruta; dois, do Velho Mundo, lembrando Bordeaux ou talvez Espanha? Ou Portugal? E quanto à idade? A maioria arriscava algo em torno de dez anos.
A expectativa aumentava à cada gole. O amigo em questão tinha a fama de possuir uma adega generosa, recheada de rótulos de prestígio. Qual seria a surpresa desta vez? Quando o papel foi retirado, contudo, os olhos de todos se arregalaram: tratava-se do mesmo vinho, em safras diferentes. Mais precisamente, quatro tintos argentinos elaborados com malbec na fria Patagônia pela Bodega Noemía em 2006, 2007, 2010 e 2011.
Quando bem escolhidos, os vinhos argentinos envelhecem com elegância e seguem sendo parceiros ideais de uma boa carne
As duas primeiras garrafas, quase vinte anos depois da colheita, mostravam como bons vinhos, não importa de onde, envelhecem com graça e complexidade. As mais jovens, por sua vez, exibiam o vigor da malbec — fruta generosa, taninos macios —, combinação perfeita para a suculência das carnes servidas.
A prova às cegas, sempre um exercício de humildade, acabou funcionando como antídoto contra uma tendência que vem crescendo em algumas rodas de enófilos brasileiros: o “cancelamento” do vinho argentino. Não se trata de boicote formal nem de cruzada declarada, mas de uma atitude repetida em algumas mesas e grupos de WhatsApp, em que o malbec e outros argentinos são tratados como algo fora de moda, previsível, quase um clichê.
Em algumas rodas enófilas, há quem torça o nariz não apenas para o malbec da Patagônia, mas também para uma das vinícolas mais prestigiadas da Argentina, a Catena Zapata, cuja história abriu o caminho para os vinhos da América Latina.
A história começa em 1902, quando Nicola Catena deixou a Itália, fugindo da fome que devastava sua região natal, e plantou em Mendoza a primeira vinha de malbec. Aos poucos, a uva francesa encontrou na Argentina um novo lar e ganhou dimensão internacional. Na década de 1960, porém, a economia argentina entrou em colapso, tornando a colheita das uvas mais cara do que deixá-las nas videiras.
Diante do dilema, Domingo Catena consultou seu filho de 22 anos, Nicolás, recém-doutor em economia. O jovem recomendou não colher. Mas Domingo, sem conseguir contrariar a própria consciência, levou adiante uma safra que sabia trazer pouquíssima renda. Anos depois, Nicolás ainda recordaria a tristeza de ver o pai trabalhar em vão.
Nos anos 1980, após expandir a distribuição dos vinhos da família no Reino Unido, Nicolás recebeu uma oportunidade que seria decisiva para o futuro dos vinhos Catena: ser professor visitante na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Lá, conheceu de perto os vinhos da Califórnia, então em ascensão, e percebeu que um novo mundo era possível. Voltou a Mendoza com a convicção de que a Argentina também poderia produzir rótulos de classe internacional.
O contexto, no entanto, era adverso. Assim como o Chile, a Argentina tinha a pecha de produtora de vinhos de mesa baratos, vendidos a granel. Apostar em qualidade parecia uma temeridade, mas Nicolás vendeu a divisão de vinhos comuns e manteve apenas o braço dedicado aos vinhos finos. Colegas e concorrentes riram, chamando-o de “completamente loco”. Mas foi justamente esse gesto ousado de exportar o primeiro vinho argentino de qualidade internacional que pavimentou o caminho para colocar o país no mapa mundial da enologia. Décadas depois, a vinícola seria reconhecida pelo crítico Robert Parker como “a referência em vinhos da América do Sul”.
O almoço no Cambuci, com as safras da Bodega Noemía degustadas às cegas, mostrou exatamente isso: quando bem escolhidos, os vinhos argentinos são muito bons, envelhecem com elegância e seguem sendo parceiros ideais de uma boa carne. O “cancelamento” em certas rodas fala menos sobre o que está dentro da taça e mais sobre modismos passageiros que, cedo ou tarde, também passam.
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