Pantagruélicas

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Sideways: quando o vinho é mais que vinho

O cult de Alexander Payne envelheceu como os bons rótulos que o inspiram

Sideways: quando o vinho é mais que vinho
Sideways: quando o vinho é mais que vinho
'Sideways' é menos sobre vinho e mais sobre como a bebida se torna uma metáfora da vida
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No filme Sideways – Entre Umas e Outras, disponível no Disney Plus, Miles Raymond (Paul Giamatti) e Jack Cole (Thomas Haden Church) embarcam em uma viagem de carro pelos vinhedos da Califórnia. O motivo oficial é a despedida de solteiro de Jack, prestes a se casar em uma semana. Mas os propósitos dos dois amigos não poderiam ser mais distintos. Miles, professor de literatura e aspirante a escritor, está mergulhado em uma depressão após o divórcio e vê no vinho uma espécie de redenção. Já Jack só pensa em aproveitar os últimos dias de solteiro da forma mais hedonista possível: dormindo com o maior número de mulheres que conseguir.

O vinho e os vinhedos são mais do que um pano de fundo — são o fio condutor da narrativa. Miles representa o enófilo erudito e pretensioso – a arma para se refugiar dos medos internos. Logo no início, sentencia: “Se alguém pedir Merlot, eu vou embora. Não vou beber nenhum vinho de Merlot.” A frase virou símbolo de um preconceito enogastronômico, dirigido contra uma uva acessível demais, segundo Miles. Seu coração, na verdade, pertence à Pinot Noir: delicada, enigmática, sensível às condições do terroir, difícil de cultivar e vinificar — uma metáfora perfeita para sua própria personalidade.

A identificação do público foi imediata. Após o lançamento, o vale de Santa Inez, onde boa parte das cenas foi filmada, viu sua população aumentar em 20%. Em 2005, ano em que o longa foi indicado ao Oscar, as vendas de Pinot Noir nos Estados Unidos saltaram 16%. E o impacto não parou aí. Em entrevista recente à Inside Hook, Rex Pickett, autor do livro que deu origem ao filme, afirmou que, antes do sucesso de Sideways, os vinhedos de Pinot Noir representavam apenas 1% dos tintos da região. Hoje, ultrapassam os 10%. A Merlot, por sua vez, que detinha 25% de participação, tornou-se quase residual — muitas vezes usada apenas em cortes.

Vinte e um anos depois, o filme envelheceu bem, como os bons vinhos que Miles tanto venera. A jornada dos dois amigos é pontuada por encontros e desencontros, gafes, revelações e diálogos carregados de humor melancólico. Jack se envolve com Stephanie (Sandra Oh), funcionária de uma vinícola local, enquanto Miles se aproxima de Maya (Virginia Madsen), uma sommelière sensível e culta que enxerga no vinho a expressão do tempo e da vida.

Divorciado, fracassado como escritor e inseguro quanto ao futuro, Miles se apega ao mundo de Baco como válvula de escape. Em meio às frustrações, uma ferida se reabre: sua ex-mulher não só se casou com outro homem, como está grávida. O vinho ganha ainda protagonismo. Miles havia guardado uma garrafa especial para um momento a dois: um Château Cheval Blanc 1961, lendário Bordeaux de uma das melhores safras do século XX. Ironia do destino — o vinho é composto por Merlot e Cabernet Franc, justamente a uva que ele despreza com tanto fervor.

Segunda ironia: o amor não durou e a garrafa ficou na adega. Ao saber da gravidez da ex-mulher, Miles decide abri-la — sozinho. Vai até um fast food, despeja o tinto num copo de plástico. Mesmo naquele cenário prosaico, sente os aromas complexos que apenas o tempo é capaz de desenvolver nos grandes vinhos. É o momento em que ele descobre que precisa ir adiante ou ficar no marasmo. Faz as malas e volta para os vinhedos da Califórnia para falar com Maya.

Sideways é menos sobre vinho e mais sobre a bebida como se torna metáfora da vida: tempo, paciência, complexidade, perdas e, acima de tudo, transformação. No meio do filme, quando Miles diz que tem um Cheval Blanc 1961 na adega, Maya diz que não se deve esperar uma ocasião especial para abrir um grande vinho — que ele próprio já é uma ocasião. Quando Miles, sozinho em um fast food, abre finalmente o lendário vinho, não há sommelier, taça de cristal ou companhia ideal. Há a verdade. Ali, no silêncio e no copo de plástico, ele enfim aprende a beber o presente.

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