Pantagruélicas
Ideias e memórias e de um jornalista apaixonado pelos vinhos e a gastronomia
Pantagruélicas
Série da Apple mostra que o brilho das estrelas Michelin também cega
A aparição no prestigiado guia gastronômico pode representar faturamento duplicado. Mas também se tornar martírio


Durante oito episódios, as câmeras da série documental Na Ponta da Faca (Knife Edge), recém-chegada à Apple TV, acompanham por meses o cotidiano de mais de vinte chefs entre a América do Norte, a Europa e o Reino Unido na busca incessante pelas estrelas do guia Michelin.
No planeta, existem cerca de 11,8 milhões de estabelecimentos que servem refeições – mas apenas 0,03% deles têm ao menos uma estrela Michelin. Hoje são 3.647 casas espalhadas pelo mundo: 82% com uma estrela, 13,6% com duas e apenas 149 no patamar máximo das três estrelas. No Brasil, são 25.
À frente das luzes da câmera, um restaurateur de Nova York admite perder vinte mil dólares por mês tentando manter o restaurante de pé até a visita do inspetor. Um restaurante quer ser o melhor frango frito do mundo esparramando trufas e caviar em nuggets. Um chef mexicano sonha que a estrela trará a esposa e os filhos para os Estados Unidos. Uma cozinheira luta para se libertar do rótulo de nepobaby. O documentário é cheio de lágrimas e colapsos: a conquista de uma estrela aparece como redenção e maldição ao mesmo tempo.
Nos bastidores de Knife Edge, a figura mais poderosa é também a mais invisível: o inspetor da Michelin. Eles vivem sob um manto de segredo quase cômico, mostrou uma matéria da revista The New Yorker de 2009. Não podem revelar o emprego nem para a família, evitam joias, maquiagem chamativa ou qualquer sinal de status, e comem sozinhos mais de duzentos dias por ano. São obrigados a provar tudo o que pedem, prato por prato, anotando cada ingrediente e técnica em relatórios que podem levar horas para preencher.
O relatório pode ser quase um tratado técnico. Assim que termina a sobremesa e paga a conta, o inspetor volta para o hotel ou para casa e passa horas descrevendo o que acabou de comer. Cada prato é dissecado: ingredientes, técnicas, temperaturas, texturas, equilíbrio, criatividade. Há campos para o serviço e o ambiente, que vão da forma como a reserva foi atendida ao gesto final do garçom, passando pelo uso do sal, pela carta de vinhos e até pela transparência dos copos.
Para restaurantes sofisticados, o preenchimento pode levar até três horas; nos mais simples, cerca de uma. Tudo é codificado num formulário padrão, em que também inclui classificam o conforto e o serviço. Essa clandestinidade e o mistério alimentam o mito.
O livro de regras da Michelin é conhecido por exigir neutralidade absoluta, mas há indícios de cansaço, intoxicações alimentares, piadas internas. No fundo, é uma vida de excesso e solidão. Um paradoxo perfeito para uma série como Knife Edge, em que todos cozinham à espera de um olhar que nunca se mostra.
O fantasma cria pressões sobre toda a cozinha e os investidores: estimativas apontam que a concessão de uma estrela pode representar alta de 20% na receita; duas, 40%, três pode significar o dobro do faturamento. Mas também pode se tornar martírio.
Em 2003, Bernard Loiseau comandava o La Côte d’Or, na Borgonha. Tinha três estrelas Michelin, livros, produtos, fama. No seu interior, convivia com medo. O guia Gault Millau acabara de rebaixá-lo de 19 para 17 pontos; o jornal Le Figaro insinuara que o Michelin poderia fazer o mesmo. Para um restaurante longe de Paris, perder uma estrela era mais do que um revés simbólico: poderia representar perda do fluxo de clientes, o status, a identidade. Loiseau vivia em estado de alerta: alterava pratos, testava molhos, acordava de madrugada para anotar ajustes. “Ele confundiu o juízo de um inspetor com o juízo do mundo”, escreveu em um texto o jornalista da New Yorker.
Em 24 de fevereiro de 2003, Loiseau supervisionou o almoço, cumprimentou clientes, foi para casa e se matou com um rifle de caça. Não deixou carta. A França ficou em choque. Após sua morte, o restaurante manteve as três estrelas: gesto interpretado como tentativa do Michelin de escapar da polêmica. Mas nada disso apagou a sensação de que o sistema pode cobrar caro de quem busca incessantemente a glória estrelada.
Knife Edge resgata, consciente ou não, esse mesmo dilema. Ao mostrar chefs chorando em frente ao telefone, esperando a ligação que confirmará ou negará o sonho, a série reencena o drama de Loiseau em escala global. Só que agora, com drones, trilha épica e patrocínio da Apple.
Talvez por isso o gesto de Roberta Sudbrack soe tão lúcido. Primeira chef brasileira a conquistar uma estrela Michelin, ela abriu mão dela para servir “comida de avó”. Quis cozinhar “para pessoas, não para inspetores”. Vale também o conselho de Ivan Ralston: a felicidade do chef e dos clientes é o que tem de nortear a cozinha.
A estrela, afinal, é só metal. Reluz, mas também cega. Knife Edge lembra que entre o esplendor e o abismo há uma linha tênue e que, às vezes, a verdadeira arte está em apagar a luz e continuar cozinhando como se o mais importante fosse a simplicidade. Proust aprovaria.
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