Roberto Rockmann | Pantagruélicas
Ideias e memórias e de um jornalista apaixonado pelos vinhos e a gastronomia
Roberto Rockmann | Pantagruélicas
Reflexões de um crítico de vinhos
Como a crise climática, o gosto globalizado e o marketing transformaram a relação entre os consumidores e a bebida, segundo John Gilman


Escrever sobre vinhos, nas últimas décadas, mudou tanto quanto cobrir economia ou política. Redes sociais, preços em disparada e os efeitos crescentes da crise climática transformaram a maneira como se produz, se consome e se fala sobre vinho. É o que diz John Gilman, crítico veterano e autor da respeitada newsletter The View from The Cellar, em entrevista ao Pantagruélicas.
“Nada afetou mais profundamente o mundo do vinho — e, na maioria dos casos, de forma negativa — do que o aquecimento global nos últimos trinta anos”, afirma Gilman. Com passagens como sommelier e vendedor nos Estados Unidos e na Suíça entre as décadas de 80 e 90, ele passou a escrever sobre vinhos nos anos 2000, transformando sua paixão em ofício.
Embora reconheça que o aumento das temperaturas tenha beneficiado regiões mais frias, como a Alemanha e a Champagne, tornando a produção mais equilibrada, Gilman observa que o saldo global é amplamente desfavorável.
“Quando comecei no comércio de vinhos, no início dos anos 80, havia duas, talvez três grandes safras por década na Alemanha. Hoje, são sete ou oito. Mas, para cada região que ganhou com o aquecimento acelerado, há três ou quatro que perderam dramaticamente. Eu não consigo imaginar como é ser produtor hoje no sul do Rhône, em partes da Califórnia como Napa Valley, ou mesmo em Bordeaux. O clima mudou tanto que os viticultores precisam reinventar suas estratégias para lidar com o calor e continuar a fazer bons vinhos. Muitos não conseguiram.”
Segundo Gilman, esse novo cenário climático não levou necessariamente a práticas melhores no campo, mas a um investimento mais agressivo em marketing. “Na prática, o que acontece é o aumento do orçamento de relações públicas ou a contratação de enólogos-celebridade, que tentam disfarçar o fato de que seus vinhos agora têm um teor alcoólico muito mais alto e estão quase intragáveis.”
Esse teatro se amarra, diz ele, à influência duradoura de Robert Parker — o crítico que moldou, nas últimas décadas, um padrão globalizado de paladar. “No mundo pós-Parker, alguns críticos seguem exaltando cegamente vinhos potentes, com álcool elevado e frutas cozidas, que são, em essência, um reflexo do aquecimento global”, diz Gilman, crítico do que chama de ‘fetichismo técnico’ que obscurece o conceito original de terroir: o lugar, o solo, o clima.
Para ele, a crítica de vinhos também perdeu muito da isenção e do rigor. “Vejo muitos críticos que atuam como torcedores das vinícolas mais ricas, em vez de avaliadores honestos da qualidade intrínseca de um vinho. É um sistema que parece corrupto. Mas o mundo do vinho apenas espelha os dilemas éticos e a confusão moral de um século XXI que caminha rumo a um pesadelo distópico.”
Foi diante desse cenário que Gilman decidiu abrir mão de acompanhar outros críticos e passou a confiar apenas em seu próprio paladar. Desde então, observa, além das mudanças climáticas e das pressões da crítica, o gosto do público também mudou. Com a alta dos preços e a queda da renda, muitos jovens passaram a consumir vinhos mais cedo, sem esperar pela maturação ideal, e a buscar rótulos fora do circuito tradicional.
“Isso é bom ou ruim para o vinho? Eu entendo esse ímpeto. Também abri muitos vinhos jovens nos meus primeiros anos no mercado. Mas hoje está muito mais caro montar uma adega. Eu cresci na classe média, mas consegui construir uma adega porque o vinho não era tão inacessível em termos de preço naquela época.”
E o futuro? Difícil prever. Mas Gilman ainda aposta numa geração de produtores comprometidos em respeitar o lugar de onde vêm seus vinhos. Um caminho possível, segundo ele, é retomar a confiança no próprio gosto. Afinal, como a gastronomia, a leitura e a vida, o vinho também é subjetivo.
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