Pantagruélicas

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O vinho brasileiro por um argentino

Adolfo Lona revolucionou a produção de vinhos no Brasil ao aumentar o pagamento pela compra de uvas e lançar o primeiro tinto brasileiro envelhecido em barrica nova

O vinho brasileiro por um argentino
O vinho brasileiro por um argentino
O vinho brasileiro pelo argentino Adolfo Lona. Foto: Arquivo Pessoal
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O desafio de erguer uma nova vinícola no Sul do Brasil, com uma proposta financeira tentadora e uma carta branca para gerir o projeto, motivou o enólogo argentino Adolfo Lona a aceitar o convite da multinacional italiana Martini & Rossi e trocar sua terra natal pelo Brasil. No entanto, para fechar o contrato – que lhe renderia 3 mil dólares mensais, cinco vezes mais que seu salário anterior – a empresa queria mais comprometimento do jovem de 25 anos e a certeza de que ele não abandonaria o projeto: Lona teria de se casar antes de embarcar. 

Consultou sua namorada, Silvia, que deu o “sim”, que perdura há mais de 52 anos. Uma semana após a cerimônia, na primeira semana de janeiro de 1973, o casal desembarcou em solo brasileiro. Lona chegava a um mercado crucial para a Martini & Rossi, que já se destacava nas gôndolas com o espumante De Greville e o tinto Chateau Duvalier, um campeão de vendas, que superavam sete milhões de garrafas anuais.

Era um momento em que grandes grupos estrangeiros como Almadén e Chandon começaram a se instalar no Rio Grande do Sul. Outros vieram inicialmente para produzir vinho base para seus vermutes. O que chegava de fora vinha nas malas: o mercado nacional era fechado em razão da pesada tributação e inúmeras restrições aos produtos estrangeiros.

Para fazer diferente, era preciso mudar. Lona percebeu que a oferta de uvas seria o principal obstáculo para produzir vinhos de qualidade. “Eram pouquíssimas variedades apropriadas para vinhos finos e as que existiam eram produzidas sem controle nenhum da qualidade e da quantidade”, relembra hoje. 

As características geográficas da região impediam a formação de grandes vinhedos. Havia milhares de pequenos produtores espalhados pelos municípios de Bento Gonçalves, Farroupilha e Garibaldi. Lona iniciou, então, uma revolução em três frentes: buscar novas variedades europeias de videiras que se adaptassem ao terroir brasileiro; implementar uma política de pagamento diferenciado para os pequenos produtores que seguissem as regras de qualidade, o que impulsionou o crescimento de grupos familiares por décadas; e buscar o que havia de melhor no mundo da enologia. 

Viajou à França e visitou o famoso Château Margaux, em Bordeaux. Ao perguntar ao enólogo-chefe, Paul Pontallier, se havia alguma dica para usar no Brasil, a resposta se tornou um mantra: “Não há receita, tem de usar o que há de melhor na sua terra”.

Uma inovação histórica chegou em 1985, quando ele envelheceu pela primeira vez um vinho brasileiro em barrica nova de carvalho francês, algo que nem mesmo a Argentina praticava na época. Em 1987, foi lançado o Baron de Lantier Cabernet Sauvignon (safra 1985), o “primeiro vinho brasileiro amadurecido em barricas novas de carvalho francês”. Em fevereiro de 1988, no Concurso Internacional de Barcelona, ganhou medalha de bronze.

A revolução técnica na Martini coincidiu com uma mudança cultural nos restaurantes. No fim dos anos 1970, o cozinheiro italiano Danio Braga – que havia se apaixonado pelo Rio de Janeiro após cozinhar para a seleção italiana de futebol – abriu o Enótria em Copacabana. O restaurante italiano ficou famoso por uma regra radical e vanguardista: não servia sucos ou refrigerantes, apenas água ou vinho. Essa postura ajudou a legitimar e estimular o consumo de vinhos finos brasileiros, que passaram a ganhar respeito e abrir caminho para muitas novas empresas no setor. Contudo, ao longo dos anos 1990, a situação mudou. O Plano Real tinha mudado o mercado, com os vinhos importados ganhando ainda mais espaço. 

A trajetória de Adolfo Lona na Martini chegou ao fim em 2004. Ele abriu seu próprio negócio, focado em seu nome e em sua experiência. Sem vinhedos próprios, manteve a política de valorizar e adquirir uvas de terceiros, priorizando seu carro-chefe: o espumante, que hoje pode ser encontrado em vários restaurantes Brasil afora, do grupo Fasano às mesas de Claude Troisgros e a dezenas de outros endereços de tíquetes diferentes. 

Em 2023, para celebrar os 50 anos de trabalho no Brasil, lançou o vinho tinto Baron Adolfo Lona, um corte com as uvas Cabernet Sauvignon, Merlot e Tannat, da safra 2020. Ansioso por saber se tinha acertado, enviou uma amostra para Danio Braga, que gostou. 

“É uma homenagem que entendi que devia fazer a uma marca que me projetou no Brasil, que foi a Baron de Lantier, da década de 80. Era um vinho tinto de guarda, que foi diferenciado na sua época e até hoje é lembrado, porque depois de 30 anos alguns vinhos estão vivos.”

Foi escolhido o melhor vinho tinto brasileiro pelo Guia Descorchardos em 2024, que traz, anualmente, avaliações de rótulos da Argentina, Chile, Uruguai, Brasil, Peru e Bolívia. Os próximos passos? No próximo ano, ele lançará uma edição do espumante Silvia, em homenagem à sua mulher. Com cerca de 50 meses de envelhecimento e pouco mais de mil garrafas produzidas, é um vinho para contemplação. Não é a única novidade.

Agora Lona se divide entre o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro. “Não aguento mais as perguntas se vou fazer vinho em Copacabana”, sorri. Um casal de enófilos o contratou como consultor do projeto TerraBenta em Paraíba do Sul, a 120 quilômetros da capital fluminense, que também deve abrir para o enoturismo no próximo ano. A propriedade tem 65 hectares, sendo cinco já ocupados por vinhas. O desafio será fazer um Syrah elegante. “Sou movido a desafios.”

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