Pantagruélicas

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O tempo em uma taça: a história da família Gaja

De Barbaresco ao vulcânico Etna, a saga da família combina rigor, inovação e afeto. Um legado que começou com a avó Clotilde, inspirou Mino Carta e hoje segue ecoando em cada garrafa

O tempo em uma taça: a história da família Gaja
O tempo em uma taça: a história da família Gaja
Francesco Gardino, diretor da vinícola Gaja. Foto: Arquivo Pessoal
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Há marcas italianas que ultrapassam fronteiras. Os bólidos da Ferrari cruzam estradas mundo afora, executivos assinam cheques vestidos de ternos de Giorgio Armani com gravatas Marinella, mulheres calçam sapatos Sergio Rossi e carregam bolsas Gucci. No mundo do vinho, o nome que carrega o mesmo peso simbólico é Gaja — quatro letras que se tornaram sinônimo de elegância, precisão e personalidade.

A história começou em 1859, quando Giovanni Gaja, produtor de uvas em Barbaresco, fundou uma pequena vinícola para abastecer o restaurante da família. O vinho era feito para acompanhar os pratos simples servidos à mesa, mas logo se percebeu que era melhor que a comida. 

A saga ganhou densidade em 1935, quando o neto, também chamado Giovanni, assumiu a direção. Dois anos depois, em 1937, tomou uma decisão que parecia trivial e hoje soa profética: colocou o nome da família em letras grandes no rótulo. Num tempo em que os vinhos piemonteses e até franceses eram anônimos, vendidos a granel, esse gesto foi quase uma revolução silenciosa.

Quando o jovem Angelo Gaja chegou à vinícola, em 1961, o Piemonte ainda seguia a tradição. Trouxe o inconformismo dos novos tempos. Determinou que só vinificaria uvas de vinhedos próprios, cortando a dependência de terceiros. Nos anos 1950, a vinícola vendia vinhos de Barolo produzidos com uvas compradas. Pouco depois, viajou aos Estados Unidos, onde trabalhou brevemente em restaurantes e conheceu produtores do Napa Valley. Voltou impressionado com a forma como o vinho era comunicado — com clareza, orgulho e emoção — e decidiu que os rótulos italianos também precisavam ter voz, história e identidade. A viagem reforçou ensinamentos recebidos aos 11 anos.

Ainda menino, Angelo brincava no pátio da casa da família quando a avó Clotilde Rey — que fora professora na Savoia e era chamada por todos de Tildìn — o chamou de lado. De temperamento forte e olhar severo, Clotilde o fitou e perguntou:

“Angelo, o que você vai fazer na sua vida?”

O garoto, sem saber responder, ficou em silêncio. Clotilde esperou, depois completou:

“Você tem de se tornar um artesão.”

Essas palavras — devi diventare un artigiano — ficariam gravadas em sua memória. Mais tarde, ela explicou o que queria dizer com isso:

“Fare, saper, far fare, far sapere — fazer; saber como fazer; ensinar os outros a fazer; e comunicar o que se faz.”

Para ela, o vinho era um gesto de arte, mas também de ética e transmissão. Décadas depois, Angelo diria que cada garrafa que produziu foi, de alguma forma, uma tentativa de honrar aquela conversa.

Clotilde também conheceu, naquela mesma época, um menino curioso que perambulava pelos vinhedos vizinhos: Mino Carta. A família Carta havia se refugiado, no início dos anos 1940, no Piemonte, durante os bombardeios da guerra. Mino perambulou pelos vinhedos locais e guardou a lembrança da mulher de voz firme que lhe falava da terra e da paciência do vinho. Anos mais tarde, já no Brasil, Mino se tornaria um dos maiores entusiastas dos vinhos Gaja. Frequentava o restaurante Massimo, em São Paulo, muito mais pela carta de vinhos do que pela comida, e sempre se emocionava ao recordar as colinas de Barbaresco.

Nos anos 1960, Angelo começou a colocar em prática a filosofia herdada da avó. Em 1964, comprou o vinhedo Sorì San Lorenzo, cuja primeira safra, em 1967, inaugurou uma nova era no Barbaresco. Depois viria o Sorì Tildìn, homenagem à própria Clotilde, e mais tarde o Costa Russi. Com eles, Gaja reforçou no Piemonte a ideia dos crus — vinhos de vinhedos únicos, até então algo típico da Borgonha.

No fim da década de 1970, Angelo ousou novamente: plantou Cabernet Sauvignon em solo de Nebbiolo. O pai, Giovanni, ao saber da novidade, suspirou: Darmagi! — “que pena”, em dialeto piemontês. O filho transformou o lamento em batismo: o novo vinho se chamaria Darmagi. “Os rótulos buscam destacar histórias da família, como Darmagi ou como Sorì Tildìn”, contou Francesco Giardino, diretor de vendas da Gaja, que esteve no Brasil nesta semana em evento da importadora Mistral. “Cada vinho carrega um fragmento de memória, uma emoção transformada em garrafa.”

Nos anos 1980, Angelo decidiu realizar um sonho antigo do pai. Em 1988, comprou dois vinhedos em Serralunga d’Alba — Marenca e Rivette —, áreas de Nebbiolo de grande prestígio que dariam origem ao Sperss. O nome, em dialeto piemontês, significa “saudade”, e traduzia um sentimento que seu pai, Giovanni, carregara por toda a vida. Quando jovem, Giovanni trabalhara por alguns dias na vinícola da família, em Barbaresco, sob o olhar severo da mãe, Clotilde Rey. Ali, tudo era disciplina: horários rígidos, silêncio à mesa, longas jornadas de colheita. Respeitava a mãe, mas sentia falta de leveza. Por isso, ao ter a chance de trabalhar por algumas semanas em Serralunga d’Alba, em uma propriedade vizinha, a experiência foi libertadora.

Ele lembrava com carinho daquelas quinze noites em que, após o trabalho, os jovens colhedores se reuniam para rir, cantar e beber o vinho da casa até tarde, sob o ar fresco das colinas. Longe da rigidez de Barbaresco, Giovanni descobriu que o trabalho com a terra também podia ser alegria. 

Décadas depois, Angelo ouviu tantas vezes o pai contar essas lembranças que decidiu transformá-las em vinho, relembrou Angelo em entrevista a Levi Dalton no podcast I´ll drink to that. Comprou o mesmo pedaço de terra que inspirara o pai e lançou o primeiro Sperss em 1988. “Foi o vinho que fiz por ele”, diria mais tarde. Por trás da potência e dos taninos firmes, há uma história simples: a de um filho que devolveu ao pai um lugar de felicidade.

Depois vieram os brancos, Gaja & Rey e Rossj-Bass, dedicados à avó Clotilde e à filha Rossana, reafirmando a ideia de que o vinho, em Gaja, é sempre uma forma de contar histórias familiares. Em 2015, a família deu mais um passo em direção ao futuro com a compra de vinhedos em Alta Langa, região de altitude e clima frio, onde ergueram uma vinícola dedicada exclusivamente a brancos. “A safra 2021 é histórica”, diz Giardino. “Ela mostra o equilíbrio perfeito entre frescor, elegância e maturação — um novo marco no caminho que Angelo e Gaia Gaja estão traçando.”

Do Piemonte, a visão se expandiu ainda mais para o sul. Em 2017, Angelo e sua filha Gaia Gaja anunciaram o projeto IDDA, parceria com o produtor Alberto Graci no Etna, na Sicília. O vulcão, com seus solos negros e altitudes que tocam o céu, oferece uma paisagem dramática e magnética. “IDDA”, no dialeto siciliano, significa “ela” — uma referência à montanha e à força feminina da natureza. Lá, o Nebbiolo dá lugar ao Nerello Mascalese e ao Carricante, em vinhos que traduzem energia, mineralidade e luz. O projeto, ao mesmo tempo moderno e ancestral, é o novo capítulo da saga Gaja — uma busca por expressão, diversidade e futuro.

Mais de 160 anos depois, a vinícola fundada para acompanhar pratos simples tornou-se um ícone global, uma marca que sintetiza o espírito italiano de unir tradição e vanguarda. Assim como uma Ferrari em alta velocidade, um terno Zegna ou uma bolsa Gucci, um Gaja carrega a essência do luxo discreto: o domínio do tempo. E, como lembrava Mino Carta, que atravessou a vida com um copo de Barbaresco nas mãos e um sorriso de saudade, “há vinhos que não se bebem — se contemplam.”

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