Pantagruélicas

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A receita da tolerância

Estudo com mais de mil britânicos revela que ter um paladar aberto a cozinhas internacionais cria maior tolerância social

A receita da tolerância
A receita da tolerância
(Foto: iStock)
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Num tempo polarizado, em que diferenças viram violência, o garfo pode ser um instrumento revolucionário. Publicado no fim de setembro na revista acadêmica SAGE Open, o estudo Breaking Bread (“Partir o Pão”), dos pesquisadores Rodolfo Leyva, Miguel da Silva Ramos e Joseph Sakshaug (Universidades de Birmingham e Munique), aponta o caminho.

Feito com mais de mil britânicos, o estudo revelou que ter um paladar aberto a cozinhas internacionais vai muito além do prazer à mesa: cria maior tolerância social. Os resultados mostram que adultos brancos britânicos que consomem mais pratos globais enxergam os imigrantes como ameaças culturais ou econômicas com menos frequência do que aqueles menos afeitos à culinária estrangeira. Eles também têm atitudes mais positivas em relação a pessoas da África, do Caribe, da Ásia e da Europa, superado apenas pela influência da educação formal.

O estudo sugere, ainda, que barracas e restaurantes de comida funcionam como espaços informais de “cruzamento de fronteiras”. Neles, as pessoas podem observar e interagir com membros de grupos externos, valorizar seu trabalho e reconhecer a humanidade em comum. Entre as recomendações práticas estão: oferecer degustações de comidas em escolas, conceder incentivos fiscais a negócios de alimentação multicultural e destacar a diversidade culinária em campanhas de turismo.

Esses resultados ecoam também do outro lado do Atlântico — mais especificamente nas páginas do livro Taste Makers, do jornalista Mayukh Sen (ainda sem tradução para o português). A obra narra a trajetória de sete mulheres imigrantes que, com seus sotaques e temperos, redefiniram a cozinha dos Estados Unidos, lutando para serem levadas a sério.

A mexicana Elena Zelayeta, mesmo cega, tornou-se apresentadora de TV com o lema: “Eu enxergo pelo sabor”. A italiana Marcella Hazan recusou-se a “americanizar” o espaguete, provando que a simplicidade faz um molho à altura dos italianos. A indiana Julie Sahni e a iraniana Najmieh Batmanglij enfrentaram o preconceito contra os temperos. Por fim, a jamaicana Norma Shirley elevou ingredientes desprezados à alta gastronomia. Todas cozinharam para cravar seu espaço na memória da nação — provando que a história também se escreve pela boca.

O Brasil conhece esse idioma. Aqui, a culinária nunca foi só sustento, e as ondas imigratórias contam a própria história de formação do país. A troca do trigo português pela mandioca indígena, ou a chegada do dendê africano, deu início à mais mestiça e aromática das literaturas. Câmara Cascudo, em História da Alimentação no Brasil, viu na mesa um ato político e civilizatório.

Ele afirmava que “no princípio foi a fome” e que “um povo que defende seus pratos nacionais defende o território”. Para ele, comer o que é da terra afirma a independência. O vocabulário culinário é tão revelador quanto o linguístico: cada receita é um dialeto, cada ingrediente, uma memória viva. Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala, completou essa visão, enxergando a cozinha como o verdadeiro laboratório da miscigenação. Ali, no encontro entre o açúcar e o azeite de dendê, o Brasil aprendeu a existir.

Essa fusão de culturas e sabores transbordou também para a literatura. A pesquisadora Katerina Kaspar, em Literatura e Alimentação em José de Alencar e em sua dissertação de mestrado, mostra como, em Alencar, as refeições são chaves para o entendimento: em Lucíola, o banquete francês revela luxo e vazio moral; em O Tronco do Ipê, uma jaca no quintal simboliza a mistura e a infância; e em O Guarani, a comida se une à coragem de Peri.

Outros autores seguiram esse rastro: Machado de Assis transformou o jantar em disfarce social; Graciliano Ramos fez da fome uma personagem brutal. Em contraste, Jorge Amado temperou seus romances com a sensualidade do dendê e dos quitutes baianos, fazendo da culinária o centro da identidade e da festa. A moqueca, o acarajé e o vatapá de Dona Flor e Seus Dois Maridos não são adereços — são a própria alma do Recôncavo.

A história brasileira também é marcada pelos sabores trazidos pelos imigrantes europeus, árabes e asiáticos. O café, que impulsionou a economia brasileira do fim do século XVIII ao início do XIX, atraiu europeus para a agricultura — e com eles vieram sabores e pratos que hoje fazem parte do cotidiano.

Escritores como Milton Hatoum, filho de libaneses, frequentemente trazem a culinária de sua herança para o centro da narrativa. Em Relato de Um Certo Oriente, por exemplo, a comida é fio condutor da memória e da saudade, com pratos árabes que representam o elo entre o passado e o presente.

Câmara Cascudo dizia que “a cozinha é a mais social das artes, porque todos nela participam”. Talvez por isso, quando a política divide, a mesa ainda concilia. O Brasil se entende no fogão. E talvez o mundo se resolveria mais depressa se, antes de discutir, sentasse junto para provar, em vez de julgar.

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