Pantagruélicas

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A felicidade entre estrelas de Ivan Ralston

Entre o peso do Michelin e a leveza dos ipês floridos, o chef faz do Tuju um espaço onde técnica, clima e sensibilidade caminham lado a lado

A felicidade entre estrelas de Ivan Ralston
A felicidade entre estrelas de Ivan Ralston
O menus do Tuju nascem de pesquisa, sensibilidade e crítica interna sem concessões (Fotos: Nadia Jung)
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A matemática estrelada da gastronomia é cruel. No planeta, existem cerca de 11,8 milhões de estabelecimentos que servem refeições – mas apenas 0,03% deles têm ao menos uma estrela Michelin. O guia nasceu em 1900, na França, criado pelos irmãos André e Édouard Michelin, fundadores da fabricante de pneus homônima. O objetivo inicial não era exatamente falar de comida, mas incentivar as pessoas a viajar mais de carro — e, assim, gastar pneus, ainda frágeis à época.

Em 1920, o guia deixou de ser gratuito e começou a ser vendido, ganhando mais prestígio. Seis anos depois, surgiu a primeira estrela, atribuída a restaurantes de “cozinha de alta qualidade”. Hoje são 3.647 casas espalhadas pelo mundo: 82% com uma estrela, 13,6% com duas e apenas 149 no patamar máximo das três estrelas. 

O Tuju, em São Paulo, comandado por Ivan Ralston, faz parte do seleto grupo dos 496 restaurantes com duas estrelas.

Mas a glória vem com custo. A revista The Economist batizou o fenômeno de “a maldição da estrela”: o prêmio traz visibilidade e prestígio, mas também eleva custos, multiplica expectativas e cobra perfeição constante — até o esgotamento. Há chefs que, exauridos, pedem para devolver suas estrelas.

Ralston, no entanto, parece mirar outro norte. “O que importa é o cliente sair feliz – e a gente estar feliz fazendo o que faz todos os dias”, diz. Para ele, um restaurante é antes de tudo espaço de restauração do corpo, da alma, da memória. 

A cozinha, curiosamente, não foi seu primeiro palco. No colégio, Ivan era apaixonado por jazz e queria ser Jaco Pastorius, o lendário baixista. Estudou música nos Estados Unidos, mas percebeu que não teria sucesso na carreira. De volta ao Brasil, passava horas tocando baixo na casa dos pais, até que o pai o chamou à realidade: era hora de trabalhar no restaurante da família, o Ráscal. Dali começou a trajetória gastronômica que completará duas décadas em 2026.

Da música, trouxe para a cozinha a disciplina dos ensaios e a atenção ao ritmo; dos restaurantes, herdou o rigor da técnica e o peso da rotina. Essa combinação de sensibilidade e método é o eixo dos menus do Tuju. Diferentemente do calendário europeu – primavera, verão, outono, inverno – os cardápios são organizados por ciclos climáticos: Chuva, Umidade, Ventania e Seca. 

A ideia nasceu do Tuju Pesquisa, instituto coordenado por sua esposa, Katherina Cordás, hoje grávida do terceiro filho do casal. A inspiração vem da própria paisagem paulista. “São Paulo é sazonalidade. Suas árvores vão nos lembrando das mudanças. Nesse momento, a cidade está florida, com ipês amarelos, brancos e roxos, exuberantes. Se mesclam com a paisagem dura e cinza da nossa cidade, dá gosto olhar.” É desse contraste entre concreto e flores que brota a inspiração de cada menu.

O próximo capítulo dessa pesquisa estreia no dia 14 de outubro de 2025, com o Menu Umidade 2025, o terceiro da série. “Os produtos, em grande parte, se repetem, cerca de 90% deles – mas as formas não”, adianta o chef. Ingredientes como pêssego, pitanga, amora, lagostim, alcachofra e echalote aparecerão reinventados, em novas composições. Poucos dias antes da estreia, os pratos passam pelo teste final, que será realizado no dia 13, no próprio restaurante.  Nessa degustação, reúnem-se parte da equipe de cozinha, sommeliers, Ivan e Katherina. Embora o processo seja coletivo, a palavra final é dela.

Katherina não hesita em vetar pratos que considera abaixo do nível exigido. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando provou uma raspadinha de pinha de araucária: achou que tinha gosto de lareira e barrou sua entrada no menu. Esse crivo implacável é parte do DNA do Tuju — onde pesquisa, sensibilidade e crítica interna convivem sem concessões.

O processo criativo de Ralston combina técnica e acaso poético. Recentemente, ao ganhar de presente ovas de tainha, percebeu que a textura lembrava cera de vela. Dessa experiência tátil nasceu um prato do menu atual: a bottarga transformada em “ravioli”, recheada com a carne da própria tainha e servida com milho e salsão. Dias depois, ao passear por Paraty, viu um quadro do artista Bruno Brito representando uma tainha. Para ele, foi um sinal de destino.

Se o estrelato exige perfeição, a vida de Ivan se ancora em uma disciplina silenciosa. Ele acorda cedo, e, em alguns dias, vai pessoalmente à Liberdade escolher os peixes mais frescos. Volta para almoçar com os filhos, em Alto de Pinheiros, antes da maratona vespertina e noturna no Tuju. “É importante que eles me vejam em casa, e que eu não viva só dentro da cozinha.”

A alimentação dos filhos segue a mesma lógica do restaurante: pitangas ajudam a acostumá-los ao azedo.

No Questionário de Proust, Ralston se define como sensível e admite o perfeccionismo como defeito: “Às vezes, meus desejos perfeccionistas me impedem até de começar algo.”

Para ele, a felicidade é feita de momentos fugazes, quando tudo se alinha; a infelicidade, de não estar em paz com as próprias escolhas.

Sua trilha sonora é dos Beatles, com Blackbirdcomo canção predileta. Gosta de heróis imperfeitos — Darth Vader, Jean Grey — e autores densos: Dostoiévski, Camus, Ian McEwan. Admira Joana d’Arc. À mesa, prefere a simplicidade: milho, acompanhado de um Vinhas do Tempo Chardonnay 2022.

Sua “madeleine de Proust” remete às férias de infância na paulista Terra Roxa, cidade natal da mãe: “Lembro do sabor da canja de galinha que a gente comia. Um prato simples, confortável e cheio de umami.”

Entre o peso das estrelas Michelin e a leveza de uma canja de infância, entre ipês floridos e menus inspirados pelo clima, entre disciplina e sensibilidade, Ralston constrói um caminho singular. No fim das contas, insiste: o essencial não é o número de estrelas, mas a medida mais simples (e talvez mais difícil) de todas: que chef, equipe e cliente saiam felizes.

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