Economia

A PEC da Transição, o Centrão e a Faria Lima

A reconstrução nacional deve colocar em primeiro lugar a segurança de renda dos mais vulneráveis

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante evento com personalidades da sociedade civil em São Paulo. Foto: Reprodução
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Antes mesmo de iniciar, o governo Lula já trava uma batalha crucial para a sua viabilidade e sucesso, a da PEC que visa criar o espaço fiscal necessário para gastos imprescindíveis tanto para mitigar a situação social quanto para recriar um horizonte de crescimento da economia. Corretamente denominada de PEC da Transição, ela busca criar um instrumento temporário de reconstrução do papel do setor público, enquanto se constrói um ordenamento mais permanente, das várias áreas, e não só da economia, negociada com o Congresso e a sociedade organizada. 

As dificuldades são inúmeras e não devem ser subestimadas. Desde logo, o próprio conteúdo e formato da PEC, definido no âmbito de uma frente ampla e, portanto, com variados interesses e perspectivas. Por sua vez, ela se constitui como uma dupla negociação, o que lhe poderá criar percalços adicionais. De um lado, se põe como uma negociação com o Congresso e, particularmente com seu segmento majoritário, o Centrão. De outro, com o denominado “mercado” que engloba diversos tipos de instituições financeiras, think tanks e mídia, além de interesses difusos dos investidores sintetizados na Faria Lima, local no qual se concentram.

Embora os interesses desses dois segmentos não sejam os mesmos, eles podem convergir ou divergir circunstancialmente, mediando as dificuldades para chegar a bom termo na negociação. É possível identificar no Centrão e adjacências os interesses mais vinculados ao poder político, como por exemplo a presidência das duas casas. Há que acrescentar aqui a questão associada às emendas parlamentares, em especial ao mal afamado orçamento secreto e que diz particularmente respeito ao montante de investimentos e sua destinação. O poder substantivo do Congresso é alto pois a aprovação formal da PEC depende dele.

A PEC poderia sinalizar à sociedade e aos agentes econômicos que a retirada do Bolsa Família do teto não é uma solução definitiva, mas apenas garantia aos mais vulneráveis

Se, com o Centrão a consigna da negociação é quanto mais espaço, melhor, como aliás, já demonstrado no governo Bolsonaro, com a Faria Lima, é o contrário, ou seja, quanto menos espaço, melhor. Decorre daí todo o conjunto de restrições à PEC, veiculados à exaustão na mídia e boletins das instituições financeiras e do Banco Central e que dão continuidade a posturas sintetizadas na defesa de regras fiscais, em particular do malsucedido teto de gastos. Embora a demanda seja genérica, ou seja, por regras que explicitem uma âncora fiscal, a preferência pelo teto de gastos, em particular, o vigente, é reiterada cotidianamente. Nessa concepção, admite-se uma exceção temporária e restrita às regras atuais, desde que acompanhadas pela definição de um novo conjunto das mesmas. O poder desse segmento não é imediato, mas pode criar um clima significativo de instabilidade e mesmo de ataques especulativos que criem dificuldades ao novo governo e, antes disso à aprovação da PEC. 

A necessidade de regras fiscais mais duras é invocada pela Faria Lima, nesse caso, em conjunto com o Banco Central, à luz de uma pretensa deterioração das finanças públicas e da possível perda de controle sobre a trajetória da dívida pública. É muito curioso notar que os dados disponíveis não mostram isso.

O quadro abaixo, extraído do Monitor Fiscal do FMI, mostra que após o déficit do ano da pandemia, o Brasil fez uma juste fiscal corrente muito duro. Um dos mais duros dentre todos os países do mundo e o mais intenso dentre os membros do G-20. O resultado é que na contramão do mundo, o setor público brasileiro apresentou em 2021 superávit primário de 0,8% do PIB, devendo este número ser replicado em 2022. Ainda no campo do gasto primário, de acordo com a Instituição Fiscal Independente (IFI), as despesas primárias têm decrescido desde a instituição do teto do gasto. Representavam 19,8% do PIB em meados de 2017, ano no qual foi instituído e caíram para 18,4% do PIB em meados de 2022. 

No que tange ao indicador de dívida líquida, a situação brasileira está longe de ser explosiva ou incontrolável. Do ponto de vista do patamar, está numa situação intermediária quando comparada a dois grupos de países: é substancialmente menor do que aquela dos países do G-7 – cerca de 60% – e um pouco maior – cerca de 20% – da média dos países da América Latina. Mas aqui cabe anotar, mais uma vez, uma redução e estabilização após 2020 e isso a despeito da política de juros praticada pelo Banco Central, que fez explodir o componente financeiro do déficit, a carga de juros, cujo valor, em meados deste, ano atingiu 6,5% do PIB. 

Saldo Primário (% do PIB) Dívida líquida (% do PIB)
País/Grupo de países 2020 2021 2022 2020 2021 2022
Economias avançadas (G7) -10,3 -6,8 -2,8 100,9 100,0 95,6
Economias em desenvolvimento -6,8 -3,5 -4,2 n.d n.d n.d
América Latina e Caribe -5,5 -1,0 0,0 51,7 49,1 49,4
Brasil -9,1 0,7 0,8 62,5 57,2 58,4
Fundo Monetário Internacional: Monitor Fiscal

Ao desconhecer tudo isso, o chamado “mercado” parece estar vivendo o seu momento de expectativas irracionais. Expectativas, como adverte o economista do FED, Jeremy Rudd, não têm uma teoria que as expliquem. Assim, os mercados financeiros líquidos são movidos pelo comportamento convencional, polarizações, instinto de manada etc. Na construção desse estado das expectativas, têm peso a postura e análises do Banco Central, as cartas (newsletters) dos bancos e sua amplificação pela mídia; todos a ecoar os riscos fiscais, a trajetória explosiva da dívida, contra os fatos. O desassossego extrapola a cobrança de um arcabouço fiscal permanente consistente, o que aliás é correto, adentrando o questionamento da necessidade dos gastos extras para os exercícios imediatos, independente dos impactos sociais.

O governo eleito terá a missão de reconstruir as instituições fiscais após a trágica gestão Bolsonaro. O arcabouço fiscal excessivamente rígido, herdado da gestão Temer, foi seletivamente flexibilizado para atender às pretensões eleitorais do atual governo. Entre 2021 e 2022, três Emendas à Constituição foram aprovadas para alterar a fórmula de cálculo do teto de gastos, estabelecer limite ao pagamento de precatórios (gerando um passivo que já supera R$ 50 bilhões) e prever a ampliação de benefícios sociais em meio ao processo eleitoral.

No que tange ao indicador de dívida líquida, a situação brasileira está longe de ser explosiva ou incontrolável

O aumento circunstancial de gastos no segundo semestre de 2022 viabilizou o pagamento de R$ 600,00 do Auxílio Brasil, mas não endereçou uma solução para 2023. O regime fiscal rígido e suas frequentes flexibilizações produzem “o pior dos mundos”: agregam incertezas ao cenário econômico, ao mesmo tempo em que levariam a uma contração fiscal para o exercício seguinte, sob o pressuposto da “volta ao teto”. A despesa primária, que alcançou 26% do PIB em 2020, deve fechar 2022 com 19% do PIB. Sob o teto, passaria a 17,6% do PIB em 2023.  

Tal quadro se manifesta na proposta de orçamento para 2023, em que o Auxílio Brasil conta com R$ 105,7 bilhões, valor suficiente para pagar um benefício em torno de R$ 400,00. A manutenção do auxílio de R$ 600,00 para 21,6 milhões de famílias em situação de pobreza demanda um acréscimo de R$ 52 bilhões ao orçamento. O acréscimo de R$ 150,00 para famílias com crianças até 06 anos de idades tem o custo estimado de R$ 18 bilhões, mas o valor deve ser alcançado progressivamente ao longo dos anos.

Há outras rubricas no orçamento de 2023 com forte redução. Os investimentos públicos estão no pior patamar dos últimos anos (R$ 22,5 bilhões, equivalendo a cerca 0,2% do PIB) e os recursos do Fundo de Arrendamento Residencial para políticas de habitação somam apenas R$ 34 milhões e são insuficientes para a manutenção de obras em andamento.

Imagem: iStockphoto e Miguel Schincariol/AFP

Além disso, mesmo no contexto de retomada do crescimento dos casos de Covid, o orçamento de saúde para 2023 é, em termos nominais, inferior ao de 2022. Também é relevante lembrar que R$ 10 bilhões do orçamento da saúde (que está no piso estabelecido pela EC 95/2016, congelado nos patamares de 2017) foram capturados pelas emendas de relator, conhecidas como orçamento secreto, de modo que recursos de programas, por exemplo, para acesso a medicamentos, provisão de médicos e controle do câncer foram cortados.

É neste contexto de cortes em investimentos e gastos sociais que se insere a PEC proposta pela equipe de transição do governo eleito. Em síntese, a medida prevê que o auxílio social (que deve voltar a ser concedido por meio do Bolsa Família) não seja contabilizado no teto de gastos e na regra de ouro (permanentemente) e nas demais regras fiscais, como a meta de resultado primário, para 2023.

A proposta não implica automaticamente a fixação de um determinado montante fora do teto, já que dependerá do ritmo de implementação do Bolsa Família e dos ajustes necessários no CadÚnico, especialmente em relação ao novo benefício, voltado a famílias com crianças até 06 anos. O valor do Programa seria de até R$ 175 bilhões, no entanto, o mais provável é que gire em torno de R$ 160 bilhões, o que será definido na lei orçamentária anual. Para os anos seguintes, não haveria possibilidade de crescimento dos gastos de transferência de renda sem observância de regras fiscais, em função, por exemplo, da necessidade de compensação pelo aumento da despesa obrigatória continuada e da meta de resultado primário.

O chamado ‘mercado’ parece estar vivendo o seu momento de expectativas irracionais

Como o projeto orçamentário previu R$ 105,7 bilhões para o auxílio dentro do teto, este espaço seria utilizado para acomodar outras despesas, com ênfase na recomposição de gastos sociais (especialmente educação, saúde e assistência social), investimentos e subsídios para a habitação popular, que estão em patamares críticos, de modo que sua manutenção levaria à redução do acesso a serviços públicos.

Se o pacote proposto pela PEC girar em torno de R$ 160 bilhões, a estimativa é que a dívida bruta do governo geral fique abaixo dos 80% do PIB em 2023, mesmo diante dos elevados juros reais.  

Ademais, ante o comportamento da arrecadação, é provável uma reestimativa da receita em relação ao originalmente previsto no projeto orçamentário de 2023, melhorando o resultado primário do exercício. Eventuais revisões de renúncias tributárias (como as relacionadas a combustíveis, que dependeriam da evolução dos preços no mercado internacional, de forma a não impactar preços) poderiam implicar o acréscimo de R$ 50 bilhões na arrecadação em 2023.

Logo, o ligeiro aumento da dívida bruta em 2023 se daria mediante a expectativa de estabilização fiscal no médio prazo, considerando o cenário de arrecadação e os efeitos positivos dos gastos sobre a demanda agregada. Projetos estruturantes como a reforma tributária (tanto da renda como do consumo) reforçariam a confiança na estabilização da dívida. 

Outra medida prevista na PEC é a possibilidade de realizar investimentos públicos fora do teto se houver excesso de arrecadação relativo ao ano anterior, limitado a R$ 23 bilhões. O dispositivo será fundamental a partir de 2024, podendo viabilizar investimentos públicos indutivos de investimentos privados, contribuindo para a formação bruta de capital fixo e, em última instância, para o crescimento sustentável da economia. A excepcionalização limitada do investimento é um dispositivo importante, posto na PEC, e a sua ampliação, dado o papel central do investimento na indução do investimento privado, sustentação do crescimento e aumento de produtividade, deveria ser discutida numa regra fiscal permanente. O debate moderno sobre regras fiscais tem salientado a necessidade de um arcabouço amigável aos investimentos estruturantes, evitando regimes pró-cíclicos que ampliam a volatilidade da economia.

Convém lembrar que, para o orçamento de 2024, a base das despesas de 2023 deverá ser ajustada pelo IPCA observado em 2022 (em torno de 6%), em substituição ao IPCA da proposta orçamentária (de 7,2%). Desta forma, haverá uma perda de orçamento da ordem de R$ 24 bilhões, que seria compensada com a previsão de investimentos fora do teto. Isto é, a medida evitaria uma contração da base das despesas sujeitas ao teto, carimbando o espaço no orçamento para investimentos públicos.

A PEC também prevê que doações da área ambiental e recursos próprios das instituições federais de ensino ficarão fora do teto. Trata-se de medida sem impacto fiscal e que, potencialmente, estimula a captação de recursos para projetos federais, como os do Fundo Amazônia e eventuais recursos internacionais que advenham do novo acordo do clima.

O ponto fundamental da PEC é que ela seria um caminho para mitigar a incerteza em relação aos benefícios do Bolsa Família, mantidos fora do teto de gastos de forma permanente ou para um período de quatro anos. Isto sugere inclusive a incorporação no orçamento de uma política de renda, em bases permanentes, viabilizada por regras fiscais que acomodem a segurança de renda dos mais vulneráveis. Além disso, o espaço aberto no teto seria capaz de absorver a recomposição de um conjunto de áreas, atendendo à demanda da sociedade por serviços públicos e investimentos estruturantes que foram muito rebaixados no período do Governo Bolsonaro.

A qualidade do pacote – com recomposição e aumento do gasto social e investimentos – implicaria elevados efeitos redistributivos e multiplicadores da renda, impactando positivamente o PIB e a arrecadação. Convém lembrar que a expectativa do mercado para o crescimento da economia em 2023 é de 0,7%, representando uma estagnação do PIB per capita. Conforme exposto, a manutenção do teto de gastos faria com que a despesa passasse de 19% para 17,6% do PIB entre 2022 e 2023. A combinação de contração fiscal e efeitos defasados do ciclo de aperto monetário ratificaria a expectativa de desaceleração da atividade econômica e provavelmente de uma recessão. Usando os cálculos-padrão sobre o multiplicador de gastos – sociais e de investimento – numa economia estagnada chega-se à constatação de que o aumento das despesas públicas, em 1,4 p.p do PIB, levará a um crescimento adicional de 2,1 p.p, o que, somado às expectativas correntes do mercado, levaria a um crescimento do PIB em 2023, próximo a 3%.

É neste cenário que se evidencia a relevância econômica e social da PEC, dotando o Estado da capacidade de suavizar as flutuações econômicas e evitar a queda da renda. Em 2023, o aumento projetado dos gastos com a PEC (entre R$ 150 e R$ 175 bilhões) poderia manter a despesa primária entre 19% e 19,25% do PIB, respectivamente.

Ademais, para mitigar incertezas, a PEC poderia sinalizar que o Poder Executivo encaminharia uma nova regra fiscal ao Congresso Nacional até o fim de 2023, combinando sustentabilidade fiscal, financiamento do gasto social e estabilização da atividade econômica.

Créditos: EBC

Interessante notar que as disponibilidades de caixa destinadas ao pagamento da dívida e o saldo em caixa dos recursos oriundos da emissão de títulos, depositados na Conta Única do Tesouro Nacional, estão em níveis confortáveis e garantem o pagamento de 9,5 meses de vencimentos da dívida. Logo, o problema do Brasil não se refere à liquidez da dívida, mas à garantia de uma trajetória de estabilização no médio prazo. 

Em outros termos, a PEC poderia sinalizar à sociedade e aos agentes econômicos que a retirada do Bolsa Família do teto não é uma solução definitiva à questão fiscal, mas apenas a garantia aos mais vulneráveis de que terão seus benefícios preservados, o que contribuiria para a redução de desigualdades e a mitigação da queda da atividade econômica em 2023. 

A reconstrução nacional deve colocar em primeiro lugar a segurança de renda dos mais vulneráveis. Encaminhada a questão conjuntural, estaria aberto o espaço para o debate sobre a modernização do arcabouço fiscal, superando os dogmas da austeridade para construir um regime capaz de conciliar estabilização da dívida e financiamento de gastos essenciais ao desenvolvimento do país, considerando as dimensões produtiva, social e ambiental. 

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