O Joio e o Trigo
Maldito é o fruto
A disputa por água nas prósperas regiões da fruticultura exportadora do Nordeste


O rosto marcado de Nazareth da Rocha Silva, 59 anos, não deixa dúvidas: a vida não foi fácil. Ainda assim, a beleza e a força estão lá, no olhar profundo, no jeito vívido de contar histórias e nos suspiros que comunicam tanto resignação quanto revolta. Nazareth exala dignidade. Ela define-se como “tudo um pouquinho”, já que, além de agricultora, é agente comunitária e professora da escola rural de Melancia, nosso ponto de encontro. A comunidade de Melancia fica em Casa Nova, município baiano que, ao lado de Juazeiro e da pernambucana Petrolina, integra o principal polo de produção de frutas do Brasil. De acordo com a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, em 2019 – último ano com dados disponíveis –, a fruticultura da região sugou 1,5 trilhão de litros d’água para irrigar 94 mil hectares, volume que encheria 600 mil piscinas olímpicas. O destino dessas frutas – e, portanto, dessa água – não é apenas a mesa dos brasileiros, mas também a dos europeus, norte-americanos e outras populações mundo afora.
Nazareth nasceu numa comunidade próxima chamada Riacho Grande, de onde foi obrigada a sair adolescente. Parte de Casa Nova foi alagada para a formação da represa da usina hidrelétrica de Sobradinho. Apesar de não estar exatamente na margem do Rio São Francisco, a porção de Riacho Grande no qual a família de Nazareth vivia dispunha de água em abundância – realidade que mudou em Melancia. A escassez hídrica é crônica na comunidade e, antes da chegada de tecnologias de armazenamento de água da chuva, como as cisternas, a vida era mais dura do que o razoável. Por anos a fio, Melancia dependeu dos carros-pipa. “Só usávamos essa água pra beber e cozinhar”, recorda. Lavar roupa era uma maratona que exigia caminhadas de 10 quilômetros sob o sol. “A gente botava as roupas no jumento e ia de pé, porque não dava pra ir amontado… Saía cedinho e só voltava quando as roupas secavam, pra não pesar muito no lombo do jumento.”
Barreira. Por causa do abastecimento irregular, Nazareth Silva não prospera – Imagem: Raquel Torres
Ironia das ironias: expulsas na ditadura por uma usina, as 45 famílias da comunidade vivem sem luz até hoje. Governante após governante, o problema permanece. A falta de abastecimento elétrico causa uma série de problemas, incluindo obstáculos para a geração de renda. Nazareth tem vontade de produzir polpa de umbu. “Ia ser bom demais. Quem não pode trabalhar de dia, ia de noite, que liga as luzes. Nós pegava (sic) as nossas polpas e colocava no freezer.” Hoje, a produção só pode acontecer por encomenda, pois precisa ser escoada de um dia para o outro para não estragar. Ela conta que houve um acordo de venda a escolas, mas a falta de autonomia foi um entrave. Na comunidade, existem placas de energia solar. Nazareth relata, porém, que o equipamento não é o suficiente para as famílias terem alguns eletrodomésticos, ou mesmo bombas que puxem água das cisternas para as plantações – o que também seria fundamental. Por lá, cultivam-se para subsistência mandioca, feijão, milho, batata-doce, coentro, cebolinha e plantas medicinais. “Mas falta água, e aí tem de reduzir.”
Nas regiões-chave para exportação de frutas, realizar o sonho de viver da terra não é para qualquer um. Nessas cidades do Semiárido, não basta lutar por terra. É preciso também lutar por água que garanta a produção agrícola. Há quem faça de forma coletiva e organizada. É o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. O MST tem, desde a década passada, ocupado áreas em projetos públicos de irrigação – infraestruturas que desviam água de rios e barragens para o abastecimento de enormes canais que garantem segurança hídrica para plantar o ano inteiro. Esses projetos, também conhecidos como perímetros irrigados, começaram a ser implantados no fim da década de 1960, e hoje são dominados pelas grandes empresas de frutas.
Alternativa. Nos acampamentos do MST, Socorro, Zezinho e outros parceiros apostam no cultivo orgânico. Zezinho pede, porém, mais educação sobre a agroecologia – Imagem: Raquel Torres
A perspectiva do MST é de que, em vários locais do Nordeste, não basta reforma agrária: é preciso ter reforma agrária irrigada. No Ceará, o acampamento Zé Maria do Tomé, que homenageia o líder camponês assassinato em 2010 no contexto do conflito fundiário no Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, ainda resiste. Na Bahia, essa experiência acabou, no entanto, de maneira traumática. Quem nos conta a história é Socorro Varela, 56 anos, integrante do movimento em Juazeiro.
Em 25 de novembro de 2019, uma reintegração de posse deu fim, ao mesmo tempo, a três acampamentos do MST. “Tinha muita plantação. Levava muita coisa para o mercado produtor de Juazeiro e vendia. E aí chega um aparato de policiais e faz o maior terror”, recorda Socorro. Os acampamentos Irmã Dorothy, Irani de Souza e Abril Vermelho haviam sido instalados em áreas da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), órgão federal responsável pela política que fez do polo irrigado Juazeiro-Petrolina um oásis para o agronegócio. A ação aconteceu de madrugada e a polícia recorreu a helicóptero, bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Pouco antes, em abril de 2019, empresários dos projetos públicos de irrigação da região tinham solicitado à então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, empenho do governo federal no despejo. De acordo com o MST, 700 famílias foram afetadas. Questionada sobre a violenta reintegração de posse – e também sobre o timing da ação, meses após o pedido dos empresários à ministra –, a Codevasf apenas respondeu que a “Justiça Federal concedeu reintegração de posse de áreas de domínio público”. “Foi uma crueldade que desmotivou as famílias a terem a sua casa, a sua terra, a sua vida”, relembra Socorro, que, percebendo o tom pessimista, emenda no instante seguinte: “Mas o sonho não acabou”. E é isso que ela nos quer mostrar.
“A desigualdade é muito grande na agricultura”, lamenta André Silva, microprodutor
Nosso destino é o Assentamento São Francisco, também em Juazeiro. Por lá, não só o sonho de viver da terra está bem vivo, como também um grupo de assentados quer ir além e produzir sem agrotóxicos. Quem nos recebe é José Aparecido de Oliveira, o Zezinho, 65 anos. “Eu era do veneno. Envenenado, né? Não tinha consciência sobre o agrotóxico.” Segundo ele, o ponto de corte foram os efeitos dessas substâncias sobre o corpo. Mas Zezinho sabe que essa tomada de consciência não é apenas individual. “Pra mudar é preciso ter um sistema, né? Ter um técnico ou uma escola que fale sobre agroecologia e agricultura orgânica. Tem de mudar uma nação.”
Ele nos leva a uma plantação de melancias ainda cultivada com agrotóxicos. O plano é, nos próximos anos, passar a produzir esta e outras frutas no modelo agroecológico. “Manga, goiaba, melão, coco, maracujá…”, enumera. O assentamento estende-se da BA-210 às margens do Velho Chico. Zezinho mostra, orgulhoso, que as famílias passaram três anos “debaixo de lona”, mas hoje moram em casas de alvenaria, com espaço para quintal e cisterna de água, onde cada qual tem sua horta. As coisas não são perfeitas, mas vão caminhando.
Dias depois, estamos a 700 quilômetros dali, no limite entre o Rio Grande do Norte e o Ceará, onde se firmou o polo exportador de frutas Jaguaribe-Chapada do Apodi, o segundo mais pujante do Brasil. É noite quando chegamos na terra de José André da Silva. Ele passou a maior parte dos seus 34 anos trabalhando para grandes exportadoras de frutas, até que, há três anos, passou a viver do que planta. Mesmo em tão pouco tempo, tornou-se uma referência na cidade potiguar de Baraúna. Como bom millennial, Silva começou a guinada pela internet. Foi graças a um grupo do Facebook que ele fez suas primeiras experiências na produção de uvas. Com o dinheiro da venda das mudas, começou a investir em uma fruta exótica que passou a fazer sucesso no Brasil: a pitaia. “Da pitaia veio tevê a cabo, veio bomba nova pro poço, veio mais um pedacinho de terra.”
Silva planta pitaia orgânica porque tem mais valor de mercado. E, na tentativa de girar capital, alterna culturas: banana, melancia, feijão, jerimum, milho… Hoje, a área plantada é de 4,5 hectares, num total de 7, mas ele quer crescer. Sonha em ter um lote em um projeto público de irrigação como o Perímetro Irrigado do Tabuleiro de Russas, que fica a uma hora de carro da sua propriedade. “O maior risco que a gente corre aqui é a falta d’água. Muita gente já perdeu terreno e casa…”, conta.
Cabido. André Silva com a família. Ele quer entrar “num negócio que não cabe a ele” – Imagem: Raquel Torres
A imagem de Baraúna ficou ligada à exploração predatória das águas subterrâneas. Porque água em abundância sempre houve, mas debaixo da terra. Na região, existem dois aquíferos, o Jandaíra e o Açu. O Jandaíra fica mais perto da superfície. Apesar disso, dar com essa água é uma espécie de loteria. O aquífero tem uma geologia semelhante àquela das grutas. Debaixo da casa do seu vizinho pode ter um bolsão, mas você mesmo pode ficar chupando o dedo. No passado, essa dificuldade existia, mas era comum achar água a 10 metros de profundidade. Nas conversas com pesquisadores, sindicalistas, militantes e agricultores, Baraúna era sempre citada como “a cidade que secou” por culpa das grandes empresas, que têm recursos técnicos e financeiros para saber onde a água está.
Silva teve sorte: achou água na primeira tentativa. Precisou cavar 101 metros, quando a média dos poços é de 150. O custo do poço foi de 6 mil reais. A bomba levou outros 10 mil. Mas a necessidade de investir não acaba. “O meu sonho é cavar outro poço e adquirir um tratorzinho”, diz com o sorriso mais largo possível.
Numa região em que o agronegócio consumiu 446 bilhões de litros dos aquíferos e dos rios só em 2019 e entregou de volta a difusa promessa de empregos para a população, os pequenos produtores sentem-se abandonados à própria sorte. “A desigualdade é grande na agricultura”, lamenta Silva. Ao lado da esposa e dos filhos pequenos, antes de se despedir, ele partilha uma conclusão. “Na verdade, eu me considero um cabido”, resume, para explicar na sequência: “O cabido é aquele que quer entrar à força num negócio que não cabe ele”. •
*Editora do site O Joio e o Trigo.
Colaborou Mariana Costa, enviada à Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte.
Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Maldito é o fruto’
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