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Mulheres são as que mais caminham, e as que menos decidem nas cidades

Caminhar é prática cotidiana na vida feminina, enquanto decidir e participar do planejamento da cidade ainda está distante

Reduzir o poder de compra da população afetará o comércio de cidades menores
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Por muitas décadas, mobilidade urbana foi um setor dominado por homens – assim como outros setores que dizem respeito ao que acontece “do lado de fora” das casas. Com o avanço dos direitos das mulheres, aumenta a cada dia a urgência da inclusão da perspectiva de gênero, em sua diversidade, nesse debate onde elas sempre foram espectadoras.

Mulheres discutirem a cidade é urgente não apenas por uma questão de igualdade de direitos, mas também por dizer respeito à vida cotidiana delas. Isso porque são maioria usando o transporte público e se deslocando a pé. Segundo a engenheira Haydee Svab, que se debruçou sobre todas as pesquisas origem-destino da região metropolitana de São Paulo, de 1987 a 2007, para avaliá-las sob a perspectiva de gênero, as mulheres fizeram mais viagens a pé que os homens. No ano de 2007, última pesquisa com banco de dados disponível, as mulheres fizeram 8,8% mais viagens a pé do que os homens. À época, entre famílias com ganhos mensais de até R$1.244, metade dos deslocamentos das mulheres é feito a pé e 28%, de ônibus.

Esse padrão se repete em outros países da América Latina, região marcada pela desigualdade de gênero. No estudo “Ela se move segura” (em espanhol “Ella se mueve segura”), realizado em Buenos Aires, Santiago e Quito, o caminhar também se evidencia como o principal modo de transporte, seguido do transporte público.

Porém, as razões para que as mulheres tenham hábitos mais sustentáveis de deslocamento são, infelizmente, mais vinculadas aos desequilíbrios entre os gêneros e ao fato de o planejamento dos transportes ser focado na produção. Assim, para conseguir realizar todas as tarefas que lhe são atribuídas, dentro das condições possíveis, as mulheres têm que caminhar mais.

Para onde e por que elas caminham

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Como aponta a pesquisadora estadunidense Rebecca Solnit, em seu livro “A História do Caminhar”, com frequência o caminhar das mulheres foi objeto de inspiração poética, levando inclusive à ideia de que as mulheres caminham para serem vistas e não para ver e acessar a cidade. Assim, para a autora, pouco se falava sobre onde elas estavam indo. Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, uma das músicas brasileiras mais famosa mundialmente, fala justamente sobre como uma mulher caminha: “O seu balançado é mais que um poema, é a coisa mais linda que eu já vi passar”.

Este olhar estereotipado sobre a presença dos corpos das mulheres no espaço público ocultou a discussão e o entendimento sobre como as mulheres se sentem caminhando, para onde estão indo e porque estão indo a pé. Entendimento essencial para se repensar as cidades e como combater as desigualdades que se expressam nelas.

Estudos mais recentes apontam que, em comparação com os homens, mulheres fazem deslocamentos mais poligonais, enquanto eles fazem deslocamentos pendulares. Ou seja, mulheres se deslocam com mais pontos de parada e destinos diferentes, enquanto homens tendem a fazer longas viagens com a mesma origem e destino (casa-trabalho). Essa distinção diz respeito, principalmente, às funções (geralmente não remuneradas) de cuidados domésticos e de outras pessoas, que ainda recaem pesadamente sobre elas – e com mais peso ainda sobre mulheres pobres, negras e periféricas. Pode-se dizer, então, que as mulheres se deslocam de forma mais complexa pela cidade.

Porém, como o estudo de Svab também aponta, a cidade é “menor para as mulheres”. Ou seja, devido ao tipo de atividades realizados, os trajetos se restringem normalmente ao próprio bairro, fazendo viagens mais próximas às suas residências. É claro que, quando se fala de um grupo tão grande, há diferenças grandes de acordo com outras características. Por exemplo, mulheres com filhos tendem a ter mais pontos de parada do que mulheres sem filhos, e todas as suas viagens são dependentes das necessidades de outras pessoas.

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Da mesma forma, quanto mais alta a renda, maior a participação do transporte individual nas viagens das mulheres e menor a da caminhada e do transporte público. Já mulheres mais pobres, sem emprego formal e moradoras de áreas mais periféricas da cidade tendem a caminhar distâncias mais longas, uma vez que o transporte público é caro demais para atender a todas as suas necessidades.

Todos estes aspectos tornam as barreiras de acesso à cidade mais ou menos “espessas”, segundo a reflexão da antropóloga chilena Paola Jirón. Ou seja, a acessibilidade pode ser determinada por outros aspectos que não são físicos, como a divisão sexual de trabalho. Através de suas etnografias acompanhando os trajetos de muitas mulheres que desempenham o papel de cuidados com filhos, filhas e pais, Jirón avaliou que a cidade era mais espessa para estes deslocamentos e estas pessoas, pois todas suas viagens eram interdependentes e muitas vezes a lugares não contemplados pelos transportes públicos.

Geografia da cidade para mulheres

A desigualdade de gênero também atinge a maneira como as mulheres se deslocam pelas cidades por causa de outro fator: o medo. O medo de vivenciar a violência (seja o assédio sexual ou a violência urbana) atinge com mais força as mulheres, principalmente porque essas experiências negativas são extremamente comuns. Basta uma mulher passar por uma situação de violência no espaço público para que suas conhecidas passem a querer evitar esse lugar. Assim como só o fato de uma rua ser escura e vazia já pode tirá-la do mapa das mulheres.

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É o que aponta a socióloga inglesa Fran Tonkiss, para quem a insegurança e o medo geram uma “geografia reduzida da cidade” para as mulheres. Ou seja, o espaço da cidade que pode ser percorrido muda para as mulheres de acordo com os horários e tipos de uso do espaço urbano, restringindo seus espaços de circulação e seu acesso à cidade. Recorrendo ao conceito da Jirón, as cidades são mais espessas para as mulheres pela questão do medo e da violência de gênero, afetando seus acessos.

Mulheres tomam decisão sobre a cidade?

Entre as razões que levaram à construção de cidades desiguais e excludentes, está uma amplamente conhecida: até hoje o planejamento urbano é feito principalmente por homens, a partir de uma perspectiva técnica, e sem a participação da população em sua diversidade, que é quem vive o cotidiano das cidades. Como resultado, como destaca Ana Ortiz, “as cidades foram construídas desconsiderando as experiências e necessidades específicas das mulheres”, inclusive ignorando a importância do caminhar.

Especialmente na América Latina, é muito baixa a representatividade das mulheres nos processos de tomada de decisão sobre mobilidade urbana. Na cidade de São Paulo, a urbanista Meli Malatesta aponta como um exemplo significativo disso a proporcionalidade das mulheres que trabalham com o tema. Na Companhia de Engenharia de Tráfego da cidade de São Paulo (CET-SP) dos 4.300 funcionários, apenas 600 são mulheres (14%); e no Fórum Nacional dos Secretários e Secretários de Transportes, organizado pela Associação Nacional dos Transportes Públicos do Brasil, apenas 14% dos cadastrados eram mulheres.

Se as cidades “deram errado” em muitos aspectos, também é porque seus espaços de decisão seguem sendo excludente, desconsiderando as necessidades de grande parte da população. É preciso não só aumentar a representatividade de gênero nesses espaços, mas que também eles sejam ocupados por pessoas que usam transporte público, caminham, pedalam e conheçam como as cidades funcionam para a maioria das cidadãs e cidadãos. Mais do que ocupar espaços de poder, é importante que as mulheres forcem a mudança para que as decisões sejam sempre construídas em conjunto com a população e não tomadas de cima para baixo.

Não há como falar na importância de ter mulheres transformando as cidades sem lembrar do legado de Jane Jacobs. A urbanista autodidata e ativista mudou paradigmas ao, no anos 1960, defender a humanização da cidade, o uso misto, a celebração do caminhar e a participação cidadã como enfrentamento a um urbanismo autoritário e rodoviarista, voltado para a expansão das cidades em subúrbios motorizados em Nova York, representado por Robert Moses. Sua luta é símbolo de como as mulheres podem quebrar dogmas sobre nossas cidades. Para serem mais justas e igualitárias, que nossas cidades sejam mais participativas e caminháveis, como Jane Jacobs ousou sonhar e muitas sonhamos até hoje.

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