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Mídia tradicional, a mãe das fake news

A falsa história da menina soterrada no terremoto do México, diz Gabriel Priolli, expõe a tradição do jornalismo de sacrificar os fatos pela audiência

Buscas incessantes na escola motivadas por uma falsa notícia
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A comovente e dramática situação da menina Sofía (ou Frida Sofía), que teria pedido socorro em meio aos escombros de uma escola destruída pelo terremoto no México, provocou uma comoção mundial. Sofía, segundo os relatos amplamente difundidos pelos meios tradicionais de comunicação, implorara por água e revelara que outras cinco crianças estariam vivas à espera de resgate. Na quinta-feira 21, o governo mexicano desmentiu a história. Não havia nenhuma aluna na escola com este nome, muito menos sobreviventes sob as ruínas.

As emissoras de tevê e os jornais mexicanos exploraram incansavelmente o episódio em busca de audiência. O sensacionalismo acabou amplificado pelo poder das redes sociais. A “fake news” mexicana, avalia Gabriel Priolli, diretor de tevê e estudioso dos meios de comunicação, mostra que o fenômeno precede a invenção da internet.“Notícias falsas são tão antigas quanto a própria imprensa”.

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Segundo Priolli, a mídia tradicional tenta jogar a culpa nas redes sociais no debate sobre as falsas notícias e defende a imposição de regras à atuação dos gigantes de tecnologia que consideraria “censura” se aplicadas contra ela. O papel da internet não deve, porém, ser menosprezado. Os indivíduos, diz, não são mais expostos ao contraditório, mas a bolhas de certezas monolíticas.

CartaCapital: As fake news são uma invenção das redes sociais?

Gabriel Priolli: Notícias falsas são tão antigas quanto a própria imprensa, que as publica por equívoco ou mesmo intencionalmente, por algum interesse extra-jornalístico. Não há dúvida de que a internet, em particular as redes sociais, elevou o problema à enésima potência, na medida em que a sua lógica de monetização dos conteúdos publicados se dá pelo volume de “cliques”, o que levou à criação de sites ou perfis dedicados exclusivamente a mentir ou distorcer informações. Mas se a questão é a paternidade das fake news, ou no mínimo a antecedência, a mídia tradicional está centenas de anos à frente da internet.

CC: É possível combater as fake news de uma maneira mais efetiva ou trata-se de um fenômeno com o qual teremos de conviver de agora em diante, uma parte da formação e interpretação da “realidade”?

GP: Há algumas iniciativas em curso, mundo afora, para combater a proliferação de notícias falsas. Os gigantes digitais, como o Google, o Facebook e o Twitter, investem na checagem dos conteúdos publicados e alteram em parte os seus famosos “algoritmos”. A ideia é que o público seja exposto a um conjunto mais variado de informações sobre os temas compartilhados na internet e tenha chance de discernir entre o que é verdade e mentira. O mais irônico nesse tema do combate às fake news é que a grande mídia privada, mundial e brasileira, cobra regulamentação dura das empresas de tecnologia, que ela entende como empresas de mídia. Quer acabar com o monopólio do Google e do Facebook. Ou seja: se a regulação da mídia envolver os “jornalões” e as tevês privadas, é censura. Mas se afetar apenas seus maiores concorrentes, deve ser adotada.

CC: Vários levantamentos mostram que, em geral, os assuntos mais acessados e compartilhados nas redes sociais são fake news. O que explica esse comportamento?

GP: Muitas explicações são tentadas para o fenômeno e ainda aguardam uma síntese. Segundo Robert Proctor, historiador da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, haveria até uma disciplina científica dedicada a ele, a agnatologia, o estudo da ignorância intencional. O entendimento mais geral é de que as instituições que se encarregavam de formar consensos na sociedade, como escolas, ciência, justiça e mídia, foram abaladas pelas novas dinâmicas sociais da era digital e enfrentam uma desconfiança crescente. De outro lado, os algoritmos da internet não expõem mais os indivíduos ao contraditório, soterrando-as em versões sempre coincidentes dos fatos. Tudo isso, somado, produz incerteza e angústia no cidadão comum, que o levariam a se aferrar às convicções mais arraigadas, em busca de chão firme para pisar nesse mundo cada vez mais “líquido”.

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