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As duas caras do Big Brother Brasil

Embora o programa venda uma versão ficcionalizada da realidade, ele desencadeia discussões profundas sobre questões sociais reais

Participantes do BBB24 recebem instruções para prova. Foto: Reprodução
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Há uma ilusão persistente e sedutora em torno da ideia de transmissão ao vivo no universo dos reality shows. Muitos telespectadores são atraídos pela promessa de autenticidade inquestionável, acreditando que a etiqueta “ao vivo” no canto da tela é garantia de acesso a uma realidade crua e sem filtros.

Existe a suposição generalizada de que, nesta arena aparentemente não roteirizada, todos – apresentador, público, patrocinadores – estão igualmente vulneráveis às surpresas e revelações espontâneas. Afinal, a imagem está lá, descaradamente exposta aos nossos olhos. 

No entanto, a verdade é que a imagem, por si só, nunca é totalmente real. Nas margens daquilo que é capturado pelas câmeras, há uma série de manipulações sutis: o close meticuloso, a trilha sonora emotiva, a narrativa cuidadosamente construída. Esses elementos, embora frequentemente invisíveis, moldam a percepção do espectador, adicionando camadas de ficção a uma realidade que, à primeira vista, parece indomada e pura. O Big Brother Brasil está imerso nessa dualidade, oscilando constantemente entre o espontâneo e o fabricado, o real e o imaginado.

O gênero descobriu uma interessante verdade, especialmente no Brasil: a vida cotidiana das pessoas pode gerar tramas tão cativantes quanto aquelas encontradas nas novelas. De fato, toda a estrutura dramática de uma novela – o conflito, o clímax, a resolução – pode ser repetida dentro do microcosmo de um reality show como o Big Brother Brasil.

Ao longo das edições do BBB, vimos personagens que lembram figuras icônicas das novelas brasileiras. Participantes que evocam a progressista Tieta, ou a dedicada Dona Lourdes, personificando o arquétipo da mãe abnegada. Figuras similares às astutas Nazarés – embora sem tesouras e escadas perigosas –, às ambiciosas Maria de Fátima, e, sem deixar as mexicanas de lado, as sofredoras Marias do Bairro, que passam por inúmeras provações antes de serem triunfantemente coroadas vencedoras.

Personagens como Sassá Mutema, Odorico Paraguassu, e Félix do Hot-dog, cada um com suas peculiaridades e carismas, encontraram seus equivalentes no BBB. Por outro lado, há participantes que surgem como o anticlímax, o tipo de personagem sem conflitos marcantes que, em uma era dominada pelo streaming, tem suas cenas “puladas” pelo público. Autor de tramas como Mulheres Apaixonadas e Por Amor, Manoel Carlos, em 2001, ao justificar a redução do tempo de cena de Reynaldo Gianecchini, Edu em Laços de Família, explicou: “felicidade não dá ibope”. O mesmo princípio parece aplicável ao universo dos reality shows.

Apesar de ser rotulado como “realidade ao vivo”, o BBB opera dentro de um ambiente altamente controlado. Há um horário predeterminado para começar e terminar, e os eventos são, até certo ponto, planejados ou influenciados pela produção. Essa natureza semi-roteirizada dá origem a um léxico específico, repleto de expressões como “o Brasil tá vendo” e “VTzeiro”. Esta última é particularmente intrigante, descrevendo o tipo de participante que permanece em grande parte passivo, como uma “planta”, esperando pelos momentos ao vivo para realizar performances calculadas, na tentativa de parecer relevante para os telespectadores.

Nem tudo que é real corresponde à realidade. Além do que é capturado pelas câmeras, existem muitos outros fatores em jogo. A autonomia dos participantes é limitada, e frequentemente são incentivados a “movimentar o jogo”. Expressões como “não pode sabonetar”, usadas por apresentadores preocupados com o tédio potencial de um elenco focado em construir amizades líquidas, tornam-se comuns. São criados mecanismos para induzir o confronto, como a exigência de votar publicamente e justificar as escolhas rapidamente, pois logo em seguida, Renata Lo Prete assume o horário com o Jornal da Globo. 

O JG, por sua vez, oferece um tipo diferente de realidade, apresentando os bastidores da política em Brasília com jornalistas posicionados em locais supostamente estratégicos, prometendo um resumo “real e ao vivo” dos acontecimentos do dia no Congresso, formato que se assemelha a uma forma de infotenimento, concluído com matérias culturais como a celebração de um disco que completa cinco décadas ou destacando algum filme que está fazendo sucesso nos circuitos culturais nos subúrbios de uma Paris nostálgica pela Nouvelle Vague. Assim, tanto o BBB quanto o Jornal da Globo, em seus próprios estilos, refletem as diversas camadas e interpretações do que constitui a “realidade” na programação televisiva.

Apesar de sua relevância como ferramenta de experimentação social, o BBB enfrenta a indiferença marcante de uma parcela considerável do público. Tornou-se quase tradição cultural no Brasil, de janeiro a abril, manifestar desdém pelo programa. Frases como “silenciei as hashtags” ou “vou revisitar Dostoiévski, vou ler um livro” são comuns entre aqueles que veem o BBB com desprezo, subestimando seu papel na revelação de dinâmicas sociais significativas.

Essa indiferença com o BBB, muitas vezes, mascara o fato de que, embora o Big Brother venda uma versão ficcionalizada da realidade, ele desencadeia discussões profundas sobre questões sociais reais. Temas como misoginia, racismo, violência e intolerância religiosa emergem não só dentro do programa, mas também nas conversas que ele gera, alcançando milhões de pessoas – só nesta primeira semana já chama à atenção que parte dos homens da casa se sinta à vontade para fazer comentários misóginos mesmo sabendo que estão sendo filmados.

Não gostar ou não assistir ao BBB é uma escolha completamente válida. Assim como alguém pode simplesmente não gostar de novelas. Contudo, é curioso observar que não há na internet grupos que passam dias inteiros condenando a produção de telenovelas. Quem não gosta, apenas segue em frente. Já a rejeição ao BBB frequentemente vem acompanhada de uma postura esnobe, criticar o programa tornou-se uma espécie de conduta “cult”. A dinâmica reflete, em certa medida, preconceitos sociais enraizados – voltando às referências novelísticas, reminiscentes de personagens como Bia Falcão, que exprimem um “horror a pobre”, já que “pobreza pega” – um temor de associação com o que é popular e acessível.

Esse fenômeno de distanciamento cultural é complexo e vai além da simples rejeição a um programa de TV. Toca em questões de acesso e exclusividade cultural. Por exemplo, o filme Monster (2023), de Hirokazu Koreeda, uma obra belíssima com uma mensagem de diversidade relevante, poderia encantar um público muito mais amplo. No entanto, sua exibição limitada a um pequeno número de salas de cinema que se autodenominam “de arte” restringe o alcance. Fosse Monster exibido em mais salas, sua apreciação poderia ser minimizada pelos mesmos que buscam exclusividade nas suas escolhas culturais, os caçadores de relíquias. O que é amplamente acessível ou popular muitas vezes é descartado por aqueles que buscam se distinguir culturalmente.

Fato é que o Big Brother Brasil é um prato cheio tanto para analistas sociais quanto para os críticos do sofá. Se por um lado serve como laboratório para dissecar as nuances do comportamento das pessoas, por outro, lembra que, no fim das contas, todos somos um tanto voyeuristas, curiosos sobre a convivência de pessoas completamente diferentes confinadas sob o mesmo teto. E é aí que o popular e o cult convergem. O BBB, que põe telespectadores em massa na condição de voyeurs, compartilha da premissa da posição voyeurística de Hitchcock em Janela Indiscreta. Assim como no clássico filme, onde o espectador é convidado a espiar a vida alheia através da perspectiva do protagonista confinado, o BBB oferece um olhar indiscreto sobre a vida de seus participantes. Dinâmica que une o fascínio universal pelo estudo do comportamento humano. Em ambos os casos, o público é seduzido pela oportunidade de observar, julgar e, por vezes, compreender os mistérios da natureza das pessoas, reveladas no palco confinado de uma casa ou de um apartamento.

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