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A Folha de S. Paulo e a hora do compromisso

Editorial do jornal paulistano tenta igualar Haddad a Bolsonaro e esvazia a democracia

Fotos: Reprodução
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No dia seguinte à maior manifestação da campanha eleitoral de 2018, protagonizada por mulheres e acompanhada por diversos grupos, movimentos sociais e partidos políticos, o editorial  da Folha de S. Paulo ignora o evento e, fato raro, na capa do jornal cobra dos líderes da corrida presidencial um compromisso triplamente qualificado: com a nação, com as regras tácitas e positivadas do jogo eleitoral e com a democracia.

Postulando um lugar impessoal e isento no processo, como é seu direito e de outros no debate realizado na esfera pública, o jornal exige de Jair Bolsonaro (PSL) e de Fernando Haddad (PT) uma declaração de que não irão romper com as “regras do jogo”. Mas o que dizer da fundamentação da cobrança que iguala ambos por, supostamente, não terem assumido posições definitivas de compromisso com a democracia?

Não faltam razões para situar Bolsonaro nesse lugar. A capa do jornal parece oferecer a pista ao dispor ao lado de seu editorial uma  imagem  do Largo da Batata tomado pelo protesto contra o candidato e sintetizado na palavra de ordem #EleNão. 

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A proporção e o alcance dos protestos que, segundo a legenda da imagem da Folha, ocorreram “ao menos em 30 municípios do país (…) além de cidades do exterior” expressam um campo diverso e heterogêneo da sociedade que traçou uma linha do que é aceitável como forma de disputa política.

Não é possível tergiversar nesse ponto: as declarações, a agenda e as posturas de Bolsonaro e sua chapa não seriam aceitas como legítimas em democracias consolidadas.

Não se trata apenas de não aceitar o resultado das urnas, mas da expressão recorrente de recusas à democracia como princípio fundamental.

Ao negar a existência do golpe em 1964, da própria ditadura e homenagear torturadores, Bolsonaro atenta contra a Constituição de 1988 que estabeleceu em seu preâmbulo o Brasil como Estado Democrático.

Não haveria o #EleNão pluripartidário, socialmente diversificado e multi-identitário se Bolsonaro não ameaçasse de eliminação simbólica e física mulheres, negros, indígenas e trabalhadores. Ao atacar a diferença, sua candidatura homogeneíza a nação, excluindo o dissenso e formas diversas de organização da vida social, familiar, afetiva etc.

Como efeito, desloca para fora dos marcos da cidadania parcela significativa da população.

A Folha, contudo, parece tratar o desprezo e a recusa de Bolsonaro a princípios democráticos fundamentais como desvios de rota, pois seria “o momento de corrigir, em linguagem clara, esse conjunto de afrontas ao patrimônio civilizatório”.

A postura de Bolsonaro não é, porém, uma questão de linguagem que se corrige com a substituição por termos mais amenos. Trata-se de uma visão de mundo potencializada por interesses de diversas ordens e que coincidem num ponto: são profundamente antidemocráticos.

Bolsonaro ataca a existência da democracia retirando dela seu conteúdo. Enquanto a Folha espera um compromisso do candidato com a democracia, as centenas de milhares de cidadãos que foram às ruas entenderam a ameaça.

Ao não observar a diferença entre as posturas, os gestos e os atos dos candidatos em relação ao compromisso com a democracia, a Folha redefine arbitrariamente os limites entre quem está dentro e quem está fora deste compromisso, uma vez que nem mesmo a Folha pode dizer que Haddad não aceita o resultado das urnas e não aceita o convívio democrático com as diferenças (gênero/sexualidade, socioeconômicas e étnico-raciais).

Ao aproximar ambos, a Folha relativiza o caráter antidemocrático de Bolsonaro e não reconhece o conteúdo democrático da candidatura  do PT, cumprindo, assim, o triste papel de reeditar a doutrina dos dois demônios, segundo a qual direita e esquerda atacam igualmente o “contrato com a nação”.

Ao seguir o argumento do editorial, é fato que o PT não reconhece a correção da sentença que prendeu Lula, nem a proibição de sua candidatura por uma decisão judicial que, na visão do partido, contraria a Lei da Ficha Limpa, uma vez que os recursos cabíveis não foram esgotados.

Não se trata aqui de defender a interpretação do partido, mas de notar que sua interpelação está baseada em um argumento jurídico totalmente cabível em uma democracia, bem como suas demandas e reclamações foram dirigidas à institucionalidade vigente.

O slogan “eleições sem Lula é fraude” se deu como manifestação política do partido, no intuito de pressionar pela permissão para que Lula disputasse a eleição.

Independentemente de concordarmos com o conteúdo, o conjunto dessas manifestações, discursos e atos pertence ao campo democrático, uma vez que disputa interpretações jurídicas e políticas no espaço legítimo das instituições e da esfera pública, sem jamais recusar seus princípios ou recusar a existência de ambas.

Todas essas manifestações se deram antes do período determinado pela Justiça Eleitoral para o registro de candidaturas, numa diferença de tempo que é fundamental e interpretada de forma tacanha pela Folha.

Mesmo antes de Haddad ameaçar a liderança de Bolsonaro e se viabilizar como candidato, o PT havia abandonado o slogan e registrado uma chapa que adere plenamente às regras do jogo eleitoral.

Ou seja, uma vez no jogo eleitoral,  o PT não questiona a validade das eleições, ao contrário de Bolsonaro.

É  sintomático  que  apareça a questão venezuelana. Por mais divergências que possam existir sobre o caráter do atual governo venezuelano, assim como de tantos outros países que não são citados no editorial, este é um tema de política externa, ou seja, de como lidar com a situação de conflito em outras nações soberanas.

Seja aqui, na Europa ou nos EUA, cabe ao eleitor decidir se vincula seu voto à leitura que os candidatos têm do que ocorre nos outros países. Fica a impressão de que era preciso aproximar Haddad de uma “ditadura”, não à toa denominada socialista, pois o apoio aberto e incondicional de Bolsonaro à tortura e ao cerceamento das liberdades e dos direitos no Brasil exigia um equivalente no outro “extremo”.

Tema onipresente no debate dos últimos anos, a corrupção tornou-se o modo preferencial para falar sobre a política no País e é acionado no editorial novamente como cobrança acerca dos compromissos democráticos de Haddad.

Ao apontar para a suposta inexistência de uma “autocrítica” do PT em relação ao envolvimento com casos de corrupção, o jornal reduz o campo da política ao campo jurídico e parece não aceitar que o debate sobre a corrupção pode ser  enfrentado no campo democrático da disputa.

Cabe também ao eleitor avaliar se as diversas manifestações de integrantes do partido, incluindo Haddad, são suficientes como “autocrítica” e condição necessária para referendar uma candidatura que, como todas os demais, se diz comprometida a combater a corrupção.

Recusar esse cálculo democrático é ser conivente  não apenas com a  criminalização de uma candidatura, mas também da base social que a sustenta e que continua a apostar no resultado das urnas como única solução legítima.

O fato é que as perguntas mais importantes deixam de ser feitas nesse esforço espúrio de equalização.

Por que o PT permanece eleitoralmente viável? Por que parte da população encontra apenas em Bolsonaro uma alternativa a “tudo o que está aí”? Por que a defesa da “família” e da “segurança” desobriga Bolsonaro a apresentar um programa econômico minimamente exequível? Por que não existe opção antipetista eleitoralmente viável que se enquadre no jogo democrático?  

Os dois candidatos não estão no mesmo lugar. Bolsonaro se colocou fora da democracia, enquanto Haddad está disputando democraticamente o seu conteúdo. Requentar a  doutrina dos dois demônios é um acinte na atual conjuntura,  uma falta de compromisso com as regras do jogo eleitoral e com os princípios fundamentais da vida democrática e, de fato, aí a FSP acerta: precisamos de um compromisso com a democracia, e seria oportuno que ele começasse pelo jornal. 

* Professores do Departamento de Sociologia – IFCH/Unicamp

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