Colunas e blogs

Luta das mulheres indígenas contra o Marco Temporal desafia o STF, o agronegócio e o governo

É surreal imaginar que Lula pode escolher para o lugar de Rosa Weber mais um homem branco. Mais bizarro é imaginar que partidários da esquerda se insurgiram contra aqueles que defendem a indicação de uma mulher

(Foto: Instituto Kabu/ Divulgação)
Apoie Siga-nos no

As imagens das mulheres do povo Mēbêngôkrê-Kayapó caminhando e cantando pelos corredores do Congresso são poderosas. Com os corpos pintados de jenipapo e urucum; ornamentadas com colares, pulseiras e bandoleiras, e com os cabelos raspados no corte típico dos Kayapó, elas se dirigiram à tarde de terça-feira (19) a uma comissão que debatia os impactos do Marco Temporal.

As mulheres Kayapó se somaram a outras 8 mil que ocuparam Brasília durante a terceira Marcha das Mulheres Indígenas em setembro, organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga).

A luta dessas mulheres têm inúmeras razões, mas a mais urgente é barrar a tese do Marco Temporal, que corre em duas frentes: no Congresso e no Supremo. Nesta quarta-feira 20, o STF retoma o julgamento sobre a tese e a Comissão de Constituição e Justiça do Senado vota o tema.

No Congresso, analistas políticos indicam que o Marco Temporal será aprovado, favorecendo o agronegócio e a mineração

O marco temporal é uma tese que considera que os indígenas só teriam direito à terra se estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ignorando a violência que esses povos sofreram ao longo dos anos. A tese legaliza e legitima as violações a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, especialmente durante a Ditadura Militar.

Sustentada por ruralistas, a tese atende aos interesses dos sojeiros. Dezenas de entidades do setor integram o processo no STF e atuam para impedir que novas áreas sejam reconhecidas como indígenas, principalmente no Pará e Mato Grosso. Em suma: querem tirar o indígena da terra para plantar soja e exportar para alimentar porcos e frangos na China.

Quem também pode se beneficiar são garimpeiros e, principalmente, empresas gigantes da mineração. Das 120 terras indígenas que aguardam reconhecimento do governo, 77 são alvo de 736 pedidos de mineração registrados na Agência Nacional de Mineração, aponta um relatório da organização Ekō.

Existem 581 requerimentos de mineração ativos na ANM com áreas sobrepostas ou contínuas nessas 77 terras indígenas ainda não homologadas. Os pedidos para explorar as áreas reivindicadas pelos indígenas incluem gigantes da mineração mundial, como a Anglo American (39 processos em terras indígenas), Potássio do Brasil (16 processos), Falcon Metais (13 processos) e Vale (4 processos).

Sem a pompa das gigantes, cooperativas de garimpeiros e empresas menores também estão na lista para explorar áreas que aguardam reconhecimento. Nos últimos anos, durante o governo de Jair Bolsonaro, esses garimpeiros tiveram as portas dos gabinetes de Brasília escancaradas para o lobby.

No Congresso, os analistas políticos apontam que o Marco Temporal será aprovado, atendendo aos interesses do agronegócio e da mineração, apesar de alguma resistência da base governista. No STF, o julgamento será retomado com placar de 4 votos a 2 contra a tese.

E neste ponto, pouco se debate sobre algo preocupante: os votos contrários ao marco temporal, tão aplaudidos por parcela da esquerda que perigosamente se encanta por decisões e posicionamentos processuais do ministro Alexandre de Moraes, também representam uma vitória dos grileiros de terras indígenas. Pois o voto de Moraes prevê a indenização pela ocupação destas terras, o que pode inviabilizar novas demarcações. 

A discussão sobre o Marco Temporal corre em paralelo com o debate público sobre a indicação de quem substituirá a ministra Rosa Weber, que se aposentará em outubro. 

A Rede de Advogados Indígenas da Amazônia defende a nomeação da presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e ex-deputada federal Joenia Wapichana. Em mais de 130 anos, nunca uma jurista indígena ou negra chegou a essa posição no Supremo.

Joênia do povo Wapichana, de Roraima, foi a primeira indígena a se formar advogada. Ela é mestre em direito internacional pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Sempre pioneira, ela foi também a primeira advogada indígena a fazer sustentação oral no STF e a primeira indígena a ser eleita deputada no Brasil.

Um dos defensores do nome de Joênia é o advogado Eliésio Marubo, integrante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari. “Temos plena certeza de que Joênia Wapichana apresenta formação e capacidade para ocupar a Alta Corte. Candidato mais brasileiro que Joênia afirmamos sem medo de errar que não há. Queremos maior diversidade no Supremo e reforçamos nosso apoio à candidatura de nossa parente. Também queremos nos sentir representados em todas as esferas do judiciário”, disse Marubo.

É surreal imaginar que o presidente Lula (PT) pode escolher para o lugar da ministra Rosa Weber mais um homem branco, reduzindo de duas para apenas uma a participação feminina entre as onze do STF, em um país com 56% de mulheres. 

Mais bizarro é imaginar que partidários da esquerda se insurgiram contra aqueles que defendem a indicação de uma mulher pelo presidente Lula. Parte da militância virtual petista está atacando quem defende uma mulher, seja ela branca, negra ou indígena.

Imagino que esses estrategistas políticos, especialmente os de redes sociais, nunca pisaram em uma terra indígena acossada pelo garimpo. Se fossem, por exemplo, no alto Tapajós, na Terra Indígena Munduruku, veriam crianças e adultos adoecidos pelo mercúrio usado no garimpo. Veriam também que quem lidera a resistência são sempre as mulheres, como as gigantes Maria Leusa e Alessandra Munduruku. Perceberiam também que trocar a vaga hoje ocupada por uma mulher, por um homem provavelmente branco, irá concretizar um retrocesso.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo