Justiça

Uber versus CLT: o trabalhador como moscas de um senhor

O Tribunal Superior do Trabalho precisa resolver neste ano um assunto fundamental para o Direito do Trabalho contemporâneo

Motoristas de aplicativos protestam em Brasília 2017 contra regulamentação que restringia operação das plataformas no Brasil. Foto: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASILFoto: MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL
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O uso de Tecnologias de Informação e Comunicação, as chamadas TIC’s, avança em todas as áreas do cotidiano em caráter global, nas relações de trabalho não seria diferente. As inovações tecnológicas desde há tempos vêm transformando a forma de trabalhar e, em muitos momentos, causando um  desemprego estrutural, seja pela substituição do trabalho humano pela força e inteligência artificial, seja pelo surgimento de novas formas flexíveis de contratação.

E o desemprego também pode ser aproveitado, já que, essa mesma tecnologia cria novas formas de assimilar a força de trabalho excedente, de forma tênue, criando uma concepção de oportunidade, empreendedorismo onde de fato reside a exploração. Um dos maiores e mais emblemáticos exemplos disso é a Uber.

Apesar do muito que já se discutiu sobre a chamada uberização ainda há muita controvérsia o que leva à algumas questões: até que ponto evoluiu ou não evoluiu no Brasil a condição dos motoristas que transportam passageiros por meio do aplicativo Uber?

Quem se dispõe a trabalhar como Uber é senhor de si mesmo ou dependente? Está dentro ou fora de um sistema de direitos?

A resposta a essas questões ainda não está clara e continua sendo um terreno desprovido de direitos razão pela qual, como no livro de Willian Golding: O senhor das moscas, há um terreno fértil para avançar civilizatoriamente no reconhecimento de direitos para tais trabalhadores ou, ao contrário, deixá-los à mercê da barbárie da exploração do homem pelo homem, onde todos são “moscas”, vivendo à esmo, dirigidas por um “senhor” imaginário, intangível, tal qual o aplicativo.

Os debates em torno da condição dos trabalhadores de transporte por aplicativo há tempos tomam espaço na mídia comum e especializada, não sem razão, já que, trata-se de uma categoria de trabalhadores numericamente expressiva (1,4 milhão em outubro de 2021, segundo dados do IPEA) e, juridicamente inexistente. Pode parecer exagerada a menção à inexistência, mas ela parte de uma noção comum à todos que é a de direitos; ter direitos, garantias contra quem se valer. Os motoristas do Uber, mais conhecido dentre outros, não dispõem de uma relação que lhes assegure direitos, salvo o de trabalhar, quando admitidos pelo aplicativo e, receber uma ínfima parte por esse trabalho.

Trabalhadores do aplicativo Uber têm direitos reconhecidos pela Justiça ao redor do mundo. Foto: Ben Stansall/AFP

Mesmo diante de tais verdades, há quem defenda que pelo fato da sociedade e a economia passarem por várias transformações, estas resultam em novas formas de trabalho e em diferentes tipos contratuais, rompendo com os parâmetros até então insculpidos na Consolidadção das Leis do Trabalho (CLT), afirmando que se trata de uma espécie trabalho autônomo.

A controvérsia em torno da classificação desses trabalhadores possuem as características do trabalho subordinado, sendo elas: (i) onerosidade; (ii) pessoalidade; e (iii) subordinação. Identificações que preenchem os requisitos da relação de trabalho subordinado.

Por outro lado, a Uber contesta as pretensões dos motoristas, alegando, (i) haver eventualidade, já que o motorista pode trabalhar quando quiser; (ii) contraprestação é dada pelos consumidores, não havendo, portanto, onerosidade; (iii) não há pessoalidade, tendo em vista que qualquer pessoa poderia se cadastrar no aplicativo; e (iv) nega a existência de subordinação, considerando a total autonomia na execução dos trabalhos pelos motoristas.

Diante desse cenário que envole a Uber e os motoristas de aplicativo, a sociedade brasileira volta a atenção para o julgamento, ainda pendente, que irá acontecer na 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST). No final de 2021, este julgamento formou maioria para reconhecer o vínculo de emprego a favor de um motorista de aplicativo do Uber. No entanto, por força de um pedido de vista, deve ser julgado em 2022.

Caso a decisão do reconhecimento seja mantida, haverá a possibilidade de a parte perdedora recorrer à Seção de Dissídios Individuais do TST, a qual é responsável por uniformizar esse entendimento. Há, ainda, a possibilidade de a matéria ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), uma vez que a Constituição Federal (CF) de 1988 apresenta o valor social do trabalho (art. 1º, IV, CF) como fundamento da República Federativa do Brasil, elegendo-o como princípio constitucional estruturante, inclusive da ordem econômica (art. 170, caput, CF). O trabalho é mencionado como forma de assegurar a dignidade do indivíduo e o seu bem-estar social no Estado Democrático de Direito, ou seja, há possibilidades dessa questão se estender por mais tempo.

Enquanto essa questão não tem um fim, não nos esqueçamos que o liberalismo econômico criou um restrito grupo de beneficiários e um grupo bem mais numeroso de vítimas, uma vez que o capitalismo nunca pretendeu, desde sua origem, estabelecer a “liberdade de mercado”, ao contrário, impôs sua forma de perpetrar desigualdades.

Interessa às empresas de aplicativo a crise de empregos porque ela cria uma força de trabalho dócil, disposta a renunciar a direitos para poder sobreviver, essa é a grande liberdade assegurada pelo sistema, a liberdade de renúncia em troca da sobrevivência.

Se para a nossa sociedade, dita civilizada, é vital o reconhecimento de direitos, reconhecimento que permita estabelecer relações reais e não imaginárias, entre quem trabalha e para quem se trabalha, criando vínculos e obrigações, então é mais do que necessário que haja uma definitiva incorporação dessa categoria de trabalhadores ao seu empregador, com o reconhecimento de tal condição, já que, eles trabalham em favor da Uber, com o cliente direcionado pela Uber, atendendo a todas as condições impostas pela Uber, pois, do contrário, serão excluídos da plataforma.

Espera-se que a decisão do TST siga o caminho percorrido por muitos países europeus criando um marco civilizatório nesse tão combalido campo que é o Direito do Trabalho.

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