Justiça

TST e Uber: teses sobre o vínculo negado à motorista de aplicativo

Parte do Tribunal Superior do Trabalho entende não haver relação de trabalho entre a empresa Uber e os motoristas

Marcelo Camargo/Agência Brasil
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No dia 11 de setembro de 2020, foi publicada decisão da Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, entendendo pela inexistência de vínculo de emprego entre motorista de aplicativo e a empresa Uber. A turma, ao analisar as violações à lei apontadas pelo trabalhador em seu recurso, entendeu que não estavam caracterizados os elementos configuradores do vínculo empregatício, constantes do art. 3º da CLT, e que a legislação (ressaltou-se sua data: de 1943) teria como padrão a relação clássica de trabalho industrial.

A CLT traz as diretrizes sobre os elementos que configuram a relação de emprego. É preciso que o trabalhador exerça a profissão com pessoalidade, onerosidade, habitualidade e subordinação. Tratando-se dos motoristas de aplicativo, a pessoalidade é inquestionável, uma vez que o cadastro é nominal e o id (login e senha) do motorista é de uso exclusivo, vedado pelos Termos de Uso da Empresa o uso do cadastro por terceiros. No mais, a Uber ainda pode excluir o registro, ou negar a prestação dos serviços por motorista que possua registro de antecedentes criminais.

Quanto à onerosidade, a Quarta Turma a questionou, ao argumento de que seria possível o pagamento diretamente do consumidor ao motorista.

Contudo, não há maiores dificuldades para se observar a caracterização da onerosidade, pois os valores das viagens realizadas são definidos exclusivamente pela Uber, das quais obtém o lucro da sua atividade empresarial. Ao motorista não é dada a possibilidade de definir os valores cobrados, tampouco lhe é permitido o conhecimento acerca da forma de cálculo pré-definida pela empresa por critérios algorítmicos. No mais, certo é que os valores recebidos em dinheiro serão posteriormente deduzidos, quando do repasse – diga-se, pela Uber – da quantia devida por conta de pagamentos em cartão.

 

Em relação à habitualidade e à subordinação jurídica na prestação do trabalho, ao menos duas teorias superariam a argumentação adotada.

A primeira teoria seria a de caracterização do trabalho do motorista como sendo intermitente, forma de trabalho introduzida na CLT em 2017, com a redação do questionável art. 443. O trabalho intermitente é caracterizado pela alternância de períodos de prestação de serviço e de inatividade, o que superaria a tese de que o fato de o trabalhador ter flexibilidade quanto aos horários de trabalho o tornaria, necessariamente, um autônomo.

Veja-se, ademais, que o elemento do controle tecnológico de todos os fluxos da prestação de serviços já tem previsão desde 2011 na CLT, quando a Lei nº 12.551 introduziu parágrafo único no seu art. 6º, fixando a seguinte diretriz: “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”. Circunstância essa completamente ignorada ou, quando não, largamente descontextualizada pela Quarta Turma do TST.

Uma crítica cabível ao trabalho intermitente é justamente aquela quanto à ausência de remuneração da pessoa trabalhadora nos períodos em que estivesse à disposição da plataforma, aguardando ser acionada para a prestação de serviços. Crítica também dirigida à modalidade de trabalho imposta pela Uber.

A segunda teoria aplicável quanto à habitualidade e à subordinação jurídica surgiria com o entendimento do conceito de gamificação do trabalho. Nos autos do processo em questão, foram juntados pela parte autora diversos e-mails e prints de tela recebidos pela plataforma, comprovando o pagamento de bônus aos motoristas que se comprometessem a trabalhar em dias, horários e regiões fixadas pela empresa. Logo, a habitualidade e o controle do trabalho se dão por meio de sistema de recompensa, o que não se pode ser ignorado, sob pena de se desconsiderar método de gestão de trabalho amplamente utilizado pelas empresas gestoras dos aplicativos.

E ainda, como mais um elemento da subordinação jurídica vertical entre a Uber e o motorista que lhe presta serviços, restou demonstrado o questionamento da primeira, caso constatasse altas taxas de cancelamento ou baixas taxas de aceitação de corridas. Como característica do trabalho autônomo, o prestador das atividades poderia gerir a sua atividade livremente, aceitando ou recusando as corridas de acordo com a sua conveniência, o que não foi demonstrado no caso. Como visto nos autos, não era possível ao motorista recusar mais de duas corridas no dia.

O fato de que não exista uma pessoa hierarquicamente superior controlando as atividades é insuficiente para dizer que o motorista de aplicativo não sofre qualquer tipo de controle. Muito pelo contrário, os algoritmos sob o controle da Uber definem e fiscalizam toda a atividade do trabalhador: desde o cliente que conduzirá, passando pelo valor a ser recebido, para os locais para os quais irá, pela sua nota, chegando até mesmo a definir pela manutenção ou não do seu vínculo com a plataforma.

Além disso, a empresa comunicou a seus motoristas que os desligariam caso oferecessem cartões para clientes contatá-los pessoalmente, assim como manifestou, diretamente aos motoristas, repúdio quanto à participação deles em atos grevistas. Fatos que reforçam a inexistência de autonomia e de subordinação à plataforma.

A partir do momento em que investigamos a caracterização ou não dos elementos constantes do art. 3º da CLT sob a perspectiva das novas formas de gerenciamento e controle de trabalho, constatamos a fragilidade do argumentos expostos no acórdão da Quarta Turma, fazendo-nos questionar se de fato o que é insuficiente e antiquado são os comandos celetistas.

De forma sumária, o TST passa a seguinte mensagem com a prolação deste acordão: “decidimos que não podemos decidir, até a edição de uma lei específica que trate do trabalho precarizado”. Isso quando, como visto, a legislação trabalhista já existente, por suas constantes revisões ocorridas ao menos desde 2011, já dá conta da relação de trabalho “uberizada”, caracterizando-a, até, como relação de emprego – mesmo que não a clássica, assim tratada no acórdão da Quarta Turma do TST.

A Quinta Turma do TST também já decidiu da mesma forma em fevereiro deste ano, reformando decisão favorável ao trabalhador, que reconhecia o vínculo empregatício entre motorista de aplicativo e a Uber, proferida pelo TRT da Segunda Região (São Paulo). Com a análise feita, foram negados os requisitos do vínculo, e julgado procedente o apelo da empresa para negar o vínculo de emprego. O acórdão proferido pela Quarta Turma do TST, na mesma esteira de argumentação, apenas reforça o entendimento que foi inaugurado pela Quinta Turma.

Cabe dizer, por fim, que o entendimento proferido nesses referidos acórdãos não representa o posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho como um todo, mas sim apenas de duas das suas oito Turmas. Certamente, contudo, aponta no sentido de o Judiciário não poder ser o único caminho a ser trilhado pelos trabalhadores na busca da efetivação dos seus direitos.

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