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Proteção da infância: parecer do MP fortalece responsabilização da Taurus por publicidade ilegal de armas

“Pelas redes sociais, a empresa promoveu armas de fogo sem qualquer filtro de público, expondo também crianças e adolescentes

Proteção da infância: parecer do MP fortalece responsabilização da Taurus por publicidade ilegal de armas
Proteção da infância: parecer do MP fortalece responsabilização da Taurus por publicidade ilegal de armas
A ação judicial movida pelo 'Intervozes' contra a Taurus pede indenização por danos morais coletivos diante da publicidade irregular de armas nas redes. Crédito: Intervozes
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O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) vai julgar um recurso da Taurus que pode se tornar um divisor de águas na proteção de crianças e adolescentes contra a publicidade abusiva no Brasil. A novidade é que o Ministério Público, em parecer recente, foi categórico ao reconhecer a ilicitude da conduta da fabricante e defender a sua condenação.

Esse posicionamento é um avanço importante: explicita que não há justificativa aceitável para que armas sejam promovidas em canais digitais de grande alcance, sem qualquer mecanismo de controle, em nítida violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente e à ética publicitária. Trata-se de um sinal contundente de que a publicidade de armas voltada a públicos vulneráveis não pode ser tolerada.

A ação judicial foi movida pelo Intervozes junto com a Comissão Arns e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Também participam como Amici Curiae o Instituto Sou da Paz e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, com apoio da Rede Liberdade. A disputa vai além de uma decisão pontual: coloca em debate os limites éticos da comunicação comercial e o dever do Estado e da sociedade de proteger a infância de mensagens que naturalizam a violência.

As campanhas da Taurus chegaram a expor armas de fogo em redes sociais e no próprio site da empresa, atingindo indiscriminadamente públicos infantis e adolescentes. Em pleno bicentenário da Independência, símbolos nacionais e datas cívicas foram instrumentalizados para promover produtos letais. Essa estratégia não é nova — a indústria armamentista há muito se apropria de valores nacionais para legitimar seus interesses —, mas ganhou novos contornos com a publicidade digital direcionada.

Em decisão de 2023, a 27ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP determinou a retirada desses conteúdos e proibiu novas publicações ilegais, mas não acolheu o pedido de indenização por danos morais coletivos. É nesse ponto que as entidades insistem: mais do que reparação, a indenização é uma afirmação de que a comunicação não pode ser usada de forma irresponsável para naturalizar a violência e fragilizar a cultura de paz.

Enquanto a punição for irrisória diante dos lucros, empresas continuarão tratando a publicidade ilegal como um risco calculado. A condenação por danos morais coletivos é fundamental para inverter essa lógica.

O Supremo Tribunal Federal, em decisão recente, validou decretos da Presidência que ampliam o controle sobre armas e munições no país. Nesse contexto, o julgamento do TJ-SP pode consolidar outro aspecto essencial: reconhecer que a regulação da publicidade também é parte da política de segurança e de proteção social.

O parecer do Ministério Público é, assim, uma vitória parcial, mas simbólica: sinaliza que o Estado brasileiro não pode ser conivente com estratégias comerciais que transformam armas em símbolos de identidade nacional ou em objetos de desejo para crianças e adolescentes. Que esse posicionamento sirva de base para uma decisão histórica no Tribunal e para o fortalecimento da cultura de paz no Brasil.

Maior incentivo à armas, mais violência

Os riscos para a sociedade, caso práticas como a publicidade de armas se tornem normais e não sejam devidamente coibidas, são evidentes. A experiência recente, especialmente durante o governo Bolsonaro, mostra como a facilitação do acesso a armamentos gerou uma perigosa sensação generalizada de que “qualquer um pode ter uma arma” e que isso significaria mais segurança, na medida em que cada pessoa poderia se defender de eventuais agressões.

Ao invés de reduzir a violência ou a taxa de homicídios, foi verificado um aumento alarmante de feminicídios, foram 1492 casos só no ano de 2024, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2022, mostrou que o Brasil teria 6 mortes a menos por dia, sem a política armamentista que teve o governo Bolsonaro. O que se observa é a consolidação de uma lógica em que o porte de armas, mesmo quando legal, passa a ser entendido como autorização para eliminar o outro diante de qualquer desentendimento. Não há liberdade nem segurança em uma sociedade onde um desentendimento pode terminar em execução sumária.

Trata-se, portanto, de um risco concreto de se naturalizar uma sociedade mais violenta, com mais mortes evitáveis e acidentes envolvendo, inclusive, crianças em suas próprias casas. É por isso que a propaganda de armas precisa ser proibida. Armas não são bens de consumo comuns que possam ser anunciados como refrigerantes ou eletrodomésticos. Elas são instrumentos de alto impacto social, com potencial de provocar tragédias irreversíveis.

A tentativa de normalizar a publicidade e o comércio de armas como algo trivial traz consequências imediatas e devastadoras para a sociedade brasileira. Ações judiciais que buscam frear esse processo, como essa contra a Taurus, não são apenas disputas legais, mas disputas sociais, que procuram garantir que o acesso às armas continue sendo uma exceção, e não uma regra banalizada.

Big Techs permitem e entregam conteúdos ilegais

Esse caso evidencia ainda o modelo de negócios das plataformas digitais, baseado na distribuição de qualquer conteúdo que gere engajamento, independentemente de ser lícito ou ilícito. O que importa para essas corporações não é a qualidade da informação, mas sim o seu potencial de compartilhamento e viralização. Quanto mais polêmico o conteúdo, maior a probabilidade de engajamento e, consequentemente, de lucro.

É justamente aí que se revela uma grande questão a ser enfrentada na regulação das chamadas big techs: a necessidade de alterar esse modelo de negócios. Enquanto ele permanecer estruturado sobre a lógica do engajamento, as plataformas continuarão a privilegiar conteúdos que geram polêmica e viralidade, ainda que violem direitos fundamentais ou representem riscos concretos à sociedade.

Além disso, não se trata apenas de conteúdos que circulam organicamente. Muitas vezes, as próprias plataformas são contratadas para impulsionar anúncios, celebrando contratos de compra e venda em que recebem valores para distribuir essas mensagens. Ou seja, não há sequer a possibilidade de alegarem desconhecimento: elas sabem o que estão fazendo, porque lucram diretamente com isso.

Ao ser questionada à época pelo Núcleo Jornalismo, em relação a este caso em específico da Taurus, a Meta, dona do Instagram, Facebook e Whatsapp, respondeu apenas que os Termos de Uso do Instagram informam ao usuário que ele não pode fazer algo ilícito ou com finalidade ilegal na plataforma. E que em seus Padrões de Publicidade, na área sobre “armas, munições ou explosivos”, está registrado que os anúncios não devem promover a venda ou o uso destes na plataforma. Na prática, os termos de uso são uma cortina de fumaça: enquanto a empresa declara proibir anúncios de armas, lucra com a sua veiculação. Revelando, mais uma vez, a necessidade urgente de regulação das plataformas, para que sejam responsabilizados pela veiculação desses conteúdos.

Essa lógica atinge de maneira ainda mais cruel os mais vulneráveis, como crianças e adolescentes, expostos diariamente a conteúdos nocivos sem que haja qualquer preocupação das corporações com os efeitos sociais desse tipo de comunicação. O que se observa é uma espécie de isenção moral, que revela, na prática, um projeto de sociedade no qual os interesses corporativos se sobrepõem a qualquer interesse público ou coletivo.

Por todos esses motivos é que o Intervozes junto com as demais organizações está engajado nesta ação e espera a condenação por danos morais coletivos. Afinal, se o Brasil quer avançar rumo a uma sociedade menos violenta e mais democrática, a proteção da infância precisa ser prioridade absoluta. Condenar a publicidade abusiva da Taurus não é apenas fazer justiça: é reafirmar que o direito das crianças e a construção de uma cultura de paz estão acima dos lucros da indústria armamentista e das big techs.

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